O afeto como princípio no direito de família brasileiro
Em 1979 um professor da Universidade Federal de Minas Gerais, João Batista Villela, falou, pela primeira vez, da “desbiologização da paternidade”. Hoje, há algumas pessoas que leem esse artigo e acham que ele defende o abando paterno. Confesso que lendo o texto fora do contexto dele, realmente entendo o que essas pessoas pensam. Contudo, esse texto é a base para o principal fundamento que possibilitou falarmos sobre o tema desse artigo: o afeto como princípio no direito de família brasileiro.
Nesse texto do professor Villela, afirma que a paternidade não é natural (na minha opinião, nem a maternidade, mas isso é um assunto para outro artigo), mas sim, algo cultural. O fato de o pai ter produzido o filho biologicamente gera uma responsabilidade civil, mas a paternidade ela é escolha de cuidado e amor àquele filho[1].
O Código Civil fala que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.” (art. 1.593). Segundo Maria Berenice Dias, a parentalidade socioafetiva “constitui modalidade de parentesco civil de outra origem”. No caso em questão, a origem desse vínculo seria o afetivo.
Assim, para a configuração da paternidade socioafetiva, é preciso observar duas questões: (a) a existência de um vínculo afetivo consolidado ao longo do tempo; e (b) a posse de estado de filho, que é a apresentação pública daquela pessoa como filho, é a famosa situação do “filho de criação”[2].
A paternidade socioafetiva, quando reconhecida, gera efeitos patrimoniais e pessoais. Pelo menos, esse é o entendimento que se tem visto nas decisões do Judiciário e também na doutrina, como é o caso do Enunciado nº 519 proposto por Heloisa Helena Barboza em 2011[3].
O divisor de águas para o reconhecimento da parentalidade (paternidade e maternidade) socioafetiva como forma de parentesco civil foi a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2016 que estabeleceu a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”[4].
Essa decisão é de setembro de 2016 e em novembro de 2017, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) – que tem também a função de regulamentar e uniformizar os atos dos cartórios -, publicou o Provimento nº 63/17.
A partir da publicação desse provimento, é possível o reconhecimento da parentalidade socioafetiva em cartório. Considerando que o mencionado provimento foi alterado em 2019 (Provimento nº 83 do CNJ), atualmente, os requisitos são:
(a) pessoas maiores de 12 anos de idade, no caso de menores de 18 anos, é imprescindível a anuência do pai e da mãe biológicos;
(b) a diferença de idade entre o pretenso pai ou pretensa mãe e o filho deve ser de, no mínimo, 16 anos;
(c) o registrador deve atestar que existe um vínculo afetivo por meio de elementos concretos, ou seja, devem ser levadas provas documentais que comprovam esse vínculo (não é algo meramente declarável);
(d) pessoas com deficiência também podem reconhecer a parentalidade socioafetiva;
(e) não pode existir decisão judicial sobre o reconhecimento de paternidade;
(f) não pode existir procedimento de adoção em curso ou finalizado;
(g) pode ser um ato unilateral.
As estatísticas mostram que grande parte das famílias brasileiras é composta por mães solo (não necessariamente solteiras, já que muitas são abandonadas mesmo estando casadas ou após o divórcio). Muitas dessas mulheres acabam encontrando outra pessoa que acolhe seu filho e criam vínculo afetivo forte, que ultrapassa o vínculo de padrasto ou madrasta e enteado.
Assim, essa relação de parentalidade é muito comum no Brasil e a possibilidade de ela ser reconhecida em cartório simplificou esse reconhecimento, já que antes era necessário enfrentar uma árdua batalha judicial para resolver essa questão.
Deixo, contudo, a ressalva de que esse reconhecimento, por ser feito em cartório, é pago e não é barato. Para conseguir a gratuidade de justiça nesse procedimento, é preciso, antes, procurar a Defensoria Pública de seu Estado. Alguns Tribunais de Justiça, também fazem mutirões de reconhecimento de paternidade e essa também é uma boa oportunidade de fazer esse reconhecimento gratuito.
Por fim, proponho que vocês façam uma reflexão sobre a nossa sociedade e quantas pessoas a sua volta têm histórias de paternidade socioafetiva para contar. Com isso, pense, também, como existem tantas outras formas lindas ser pai e como a luta desses pais socioafetivos para conseguirem ter seus vínculos parentais permitiram que vários filhos, hoje, pudessem ter em sua certidão de nascimento o nome de um pai que realmente os ama e cuida e que isso, no final das contas, é o que importa.
[1] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21 (nova fase), maio 1979.
[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[3] “O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.”
[4] Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n. 840.