Artigo em coautoria com Natália Mazoni
Natália é advogada internacionalista, especializada em políticas voltadas para igualdade de gênero e faz parte do projeto “Women, Business and the Law” no Banco Mundial.
A evolução do Código Civil e a Igualdade de Gênero no Direito de Família
Uma contextualização no Brasil e na América Latina
Há pouco tempo, estávamos vivendo sob regras diferentes. Um passado que parece muito distante, mas, na verdade, está logo na esquina.
Quando o Código Civil de 1916 ainda vigia (detalhe, ele vigorou até a entrada em vigor do Código Civil de 2002), tínhamos regras muito complicadas. Apenas para ilustrar, era possível o marido anular o casamento com a esposa que já houvesse sido deflorada.
O marido era considerado expressamente como chefe da sociedade conjugal (art. 233), competindo a ele a representação legal da família.
É interessante observar que o Brasil foi um dos últimos dos 32 países da América Latina e Caribe (região também conhecida como LAC) a mudar o texto do Código Civil, eliminando a exclusividade do marido de ser “chefe de família”. De acordo com o relatório Women, Business and the Law, publicado pelo Banco Mundial no começo de 2020, nos últimos 50 anos, outros quatro países fizeram mudanças em suas leis para permitir que homens e mulheres compartilhem a função de chefe da sociedade conjugal: Suriname e Peru, na década de 80, e, mais recentemente, após 2010, Honduras e Nicarágua seguiram o mesmo caminho.
Além disso, ao marido cabia a administração dos bens comuns E DOS BENS PARTICULARES DA MULHER. Assim como no Brasil, no começo dos anos 70, a administração dos bens conjugais era exclusiva do marido em outros 9 países da América Latina, como era o caso da Argentina, Bolívia, República Dominicana, Equador, Haiti, Peru, Porto Rico, e Paraguai. A boa notícia é que atualmente não há restrições para que a mulher também seja responsável pela administração dos bens conjugais em todos os 32 países da região.
No contexto brasileiro, o homem, como chefe da família, também possuía o direito de sozinho decidir fixar e mudar o domicílio da família. Essa realidade também se traduziu em outros países da América Latina. Há 50 anos, a prerrogativa de escolha de domicílio familiar era exclusiva dos maridos em 22 dos 32 países da região – incluindo o Brasil. Apesar de muito progresso ter sido feito ao longo dos últimos 50 anos, atualmente ainda há países na região cuja legislação garante aos maridos poder exclusivo de decisão sobre o domicílio familiar, como Antígua e Barbuda e o Haiti.
Também era uma faculdade do marido autorizar que a mulher tivesse uma profissão, ou até mesmo residir fora do teto conjugal, e o art. 233, o Código Civil de 1916 dizia que a manutenção da família cabia ao homem.
A mulher não podia, sem autorização do marido, aceitar heranças ou legados. Não podia litigar em juízo civil. Nem mesmo vender seus próprios bens! A ideia de família consistia no homem, a mulher e seus filhos. Qualquer tipo de relação que não fosse essa, extremamente tradicional, era tratada de forma pejorativa. Era discriminada inclusive pela lei – quanto mais pela sociedade!
As chamadas “concubinas” não faziam parte desse modelo de ligação conjugal – mesmo que não houvesse nenhum impeditivo para que se casassem, como acontecia no caso do concubinato chamado “puro” -, em um primeiro momento não possuíam qualquer tipo de direitos. Não poderiam ser beneficiadas por doações, não podiam ser incluídas em testamentos, e muito menos ter direito a qualquer dos bens adquiridos por seus companheiros.
Com o passar dos anos, essa inexistência de direitos foi evoluindo, os tribunais buscaram fazer um “exercício hermenêutico” para não deixar essas mulheres a ver navios. Passaram a entender que o concubinato era uma sociedade de fato, e a concubina deveria ser indenizada pelos serviços prestados aos homens com quem conviveram – o que não deixava de ser uma forma indireta de prestar alimentos.
Os requisitos à época eram duros. Era necessário fazer prova do esforço comum – é difícil fazer prova de que houve realmente uma contribuição. Como fazer provas de que a pessoa só conseguiu adquirir um bem, porque a outra estava em casa, cuidando da casa, cuidando dos filhos, dos cachorros, papagaios, de todas as obrigações que envolvem um relacionamento? Fazer prova disso é quase uma prova diabólica, negativa, praticamente impossível de ser feita.
Isso em um primeiro momento. Depois, veio a Constituição de 88. Tornou a união estável modelo de entidade familiar (art. 226, §3º), dizendo que para tanto, deveria haver uma convivência plena, contínua, duradoura, entre homem e mulher – essa interpretação já está defasada, mas é o que surgiu em um primeiro momento. Assunto para outro dia.
A Constituição, em outras passagens, fez questão de deixar claro que não poderia mais haver essa superioridade dos homens em detrimento das mulheres, inclusive dentro do núcleo familiar. O art. 5º, caput, diz que todos são iguais perante a lei. O primeiro inciso do art. 5º reforça essa ideia, dizendo que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Por que reforçar isso, mais uma vez? Por esse ranço histórico tão recente. O homem estava legalmente autorizado a se sobrepor a mulher. O pátrio poder – que se estendia à mulher e aos filhos – foi substituído pelo poder familiar. Homens e mulheres em igualdade de deveres e direitos, não só dentro de casa, mas também na sociedade!
Há também a enorme relevância dos novos modelos de família que passaram a ser enquadrados na ideia de poder familiar, desde a Constituição de 88. A mulher hoje não tem autonomia apenas nas relações conjugais heteronormativas, mas também em uniões homoafetivas, e nos casos de arranjos familiares monoparentais (ou mães solo), que são mais de 11,6 milhões no Brasil, de acordo com dados do IBGE de 2015.
Foram editadas leis posteriores à Constituição, como a Lei nº 8.971/94, que disciplinou a união estável como modelo de entidade familiar, e começou a afrouxar esses requisitos necessários para a meação dos bens entre os companheiros, por exemplo. Durante a vigência desta lei, a convivência tinha que ser de no mínimo 5 anos, ou ter uma prole comum. Seria possível a meação, mas ainda havia necessidade de prova do esforço comum. Poderiam ser pleiteados alimentos também, havendo direitos hereditários como um cônjuge qualquer.
Depois, veio a Lei nº 9.278/96, mais abrangente, que facilitou a caracterização da união estável reconhecida como unidade familiar. Parou-se de exigir um tempo mínimo de convivência e o esforço comum passou a ser presumido! Além dos direitos anteriores, criou o direito real de habitação.
Hoje em dia, a ideia de concubinato, que antes era extremamente abrangente, agora é utilizada apenas para denominar pessoas que não podem se casar, mas estão juntas ainda assim. Por exemplo, pessoas que já são casadas, ou irmãos, ou pais e filhos…
Devemos nos afastar, o máximo possível, desse nosso passado, que por vezes reforça as injustiças que vivemos até hoje. Que afasta a cada dia mais as mulheres do mercado de trabalho, dos cargos em alto escalão. Que silencia as violências, que percebemos, mas nada a respeito fazemos.
Em termos práticos, o afastamento dessas ideias e instrumentos normativos antiquados não serve apenas a um propósito de “combate ao patriarcado”. A existência de um arcabouço jurídico mais igualitário e inclusivo garante a autonomia financeira e fortalece a presença da mulher no mercado de trabalho. Possibilita que mulheres busquem o sonho de abrir e gerenciar seus próprios negócios. E assegura que injustiças e desigualdades – outrora tão aceitas, normalizadas e até esperadas – sejam veementemente rechaçadas e ganhem voz sob o respaldo da lei.
Precisamos honrar os avanços que conquistamos, não podendo ser apenas meros instrumentos reprodutores dessas desigualdades. Por que não dar espaço e visibilidade a outras mulheres? Por que não sermos mais inclusivos? Devemos fazer valer todas essas mudanças que estão acontecendo diariamente, e que não podem regredir. O famoso efeito cliquet dos direitos humanos.
Parabéns! Texto bem didático sobre o assunto.
Muito felizes que você tenha gostado, Júlia!