Marina:

Essa semana escrevemos um artigo sobre como a Constituição foi um marco entre duas realidades muito distintas: a relação abertamente desigual entre homens e mulheres no Código Civil de 1916, especialmente em seus lares, e a suposta equiparação trazida a partir de 1988, quando a Constituição assegurou a homens e mulheres igualdade em direitos e obrigações, havendo a supressão de diversas passagens do Código Civil de 1916, com a chegada do Código Civil de 2002 – passagens essas que revelavam o homem em uma posição de grande superioridade em relação à mulher. Desde então, a desigualdade passou a ser mais velada, não apenas nos núcleos familiares, mas na sociedade como um todo.

No entanto, todos sabemos que, mesmo depois da Constituição de 1988, a dinâmica de igualdade (textual) do homem sobre a mulher não é nenhum mar de rosas. Nós conseguimos visualizar as dificuldades enfrentadas pela mulher em diversos âmbitos, que vão muito além da relação conjugal.

Por vezes, não percebemos, mas somos extremamente coniventes com a perpetuação desse nosso passado, que como mostramos, não é tão distante. A maioria de nós não faz por mal, mas está sempre lá. Um exemplo muito claro disso está em grande parte dos lares brasileiros durante a pandemia e o isolamento social da COVID-19: mulheres em todos os cantos do país estão abarrotadas de uma carga mental extra. Além de serem responsáveis por seus próprios empregos – visto que hoje em dia é muito comum uma mulher ter um trabalho remunerado-, parece que automaticamente ficaram responsáveis por outras obrigações: cuidados da casa, alimentação dos filhos, preparação do almoço, limpeza dos cômodos, dentre outras atividades que, por si só, já são um emprego de carga horária gigantesca.

As mulheres não são responsáveis por cuidar de suas casas? Claro que são. Assim como todos os outros residentes daquele ambiente doméstico. Pessoas que contavam com ajuda de fora – seja de uma faxineira, seja de uma passadeira ou uma babá -, estão tendo que “se virar nos 30” para dar conta dessa nova demanda de trabalho que passou a tumultuar os lares desde então.

Isso não está acontecendo em todas as casas, claro, mas pela internet afora é possível ler relatos de mulheres que estão exaustas e em constante malabarismo para dar conta de um recado que não lhes pertence exclusivamente. Essa ideia que a mulher é quem tem que desempenhar todas essas funções tem tudo a ver com o assunto da nossa semana, não acha, Clara?

Clara:

Com certeza. Essa imagem da “Mulher Maravilha”, que de tudo dá conta com primor, é uma imagem que sobrecarrega as mulheres de forma imensurável. Essas mulheres se dividem em duas (ou mais): primeiramente, se sentem obrigadas a desempenhar papéis que são designados socialmente a elas, como a maternidade e o trabalho doméstico, sem que parceiros ou companheiros também assumam sua parte no exercício dessas funções. É muito importante que saibamos que isso é uma construção social feita por homens e para homens, e que elas podem e devem ser questionadas. Além disso, essas mulheres ainda tem que dar conta  de um mercado de trabalho absolutamente desigual, em todos os espectros do que significa ser desigual: salário, ascensão, respeito, representatividade, etc. 

Para ilustrar um pouco disso, basta uma pesquisa rápida e encontramos os seguintes dados fornecidos pela Valor Econômico, em 2018: enquanto as mulheres já ocupam 51,7% do mercado de trabalho, essas mesmas mulheres ganham, em média, 23,5% a menos que os homens em cargos iguais ou similares aos delas. Ainda, quando olhamos para cargos de chefia, a desigualdade fica mais evidente: apenas 37,8% das mulheres no mercado de trabalho ocupam cargos gerenciais no Brasil, enquanto em média a formação das mulheres supera a dos homens (16,9% possuem ensino superior, contra 13,5% dos homens). 

Essa desigualdade no mercado de trabalho gera uma baixa representatividade em todos os meios e, consequentemente, em um dos cenários mais importantes para a evolução da pauta da igualdade de gêneros: a política. Um ponto relevante que precisamos ter em mente é: se as mulheres são, aproximadamente, 50% da população, por quê não temos 50% de mulheres em cargos políticos? Cargos políticos, em uma democracia ideal, não deveriam ser um retrato da sociedade? Se isso não é a nossa realidade, algo está errado. 

Para ilustrar, de acordo com o site Correio Brasiliense, o Brasil é o 140º em ranking de 190 países no quesito participação feminina no Poder Legislativo: no Congresso, as mulheres ocupam 15% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 13% no Senado. Para dados ainda mais completos, vale muito a pena dar uma passada no “Politize!”, que lá tem bastante conteúdo a respeito.

MARIANA:

Pois é Clara, e isso é um problema global. Um exemplo disso é que o candidato à presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, estava para definir, essa semana, quem seria sua Vice – falo no feminino, porque uma das exigências dele é que fosse uma mulher não branca – e ele veio recebendo amplo apoio em razão disso. Em contrapartida, o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que que a presença de uma mulher como candidata à Vice-Presidente poderia “ofender” alguns homens norte-americanos. Pois bem, a candidata foi escolhida: Kamala Harris. Ela é formada em Direito, foi Procuradora da cidade de São Francisco na Califórnia, é Senadora, filha de um jamaicano e uma indiana, e muito conhecida por defender os direitos fundamentais das minorias (nem preciso falar que já sou fã dela).

Essa fala do Trump mostra como a desigualdade é forte nos espaços de poder. E tudo isso começa desde cedo, em casa, quando somos obrigadas por nossos familiares a assumir exclusivamente o lugar do cuidado. Como se esse fosse o único espaço que podemos ocupar em casa, na família e na sociedade.

E essa questão fica fortemente enraizada na gente, sabe? Vejo no dia a dia do meu trabalho, em diversos casos de divórcio, clientes mulheres que, apesar de ocuparem cargos laborais extremamente pesados, não se dão a oportunidade de questionarem se elas realmente dão conta de suportar a fixação da residência dos filhos com elas. Assim, elas assumem, sem pensar, esse fardo da criação praticamente sozinhas, como se esse lugar fosse o único possível para ocuparmos dentro das nossas famílias.

Tem uma entrevista da Taís Araújo no programa da Tatá Werneck (pega o lencinho, tá?), que retrata muito esse cenário que eu vejo no meu trabalho: a culpa imensa de estar trabalhando quando se tem um filho para criar e a solidão de estar nessa posição. A Taís contou que ela ficou em uma gravação no dia do aniversário do filho, chorando pelos cantos, sendo consumida por uma angústia gigantesca, enquanto o pessoal da produção falava para ela ir para casa, mas ela não quis, porque ela TINHA que trabalhar e dar conta de tudo.

Será que temos que dar conta tudo sozinhas? Será que é isso mesmo? Será que esse lugar não pode ser dividido com um parceiro ou uma parceira, ou ainda, com alguma rede de apoio?

MARINA:

Por isso é tão importante começarmos a girar algumas chaves, inclusive dentro das nossas próprias casas. Tendo consciência dessas situações, que parecem naturais, mas que na verdade não deveriam ser, podemos despertar uma mudança, ainda que aos poucos. 

Assim, naturalizaremos a divisão de tarefas, o entendimento mútuo de que todos são responsáveis pelos cuidados da casa, da família, e também dos próprios deveres profissionais. Ocuparemos novos espaços, e alcançaremos maior representatividade.

Se cada um trouxer consigo a noção de que a mulher tem o mesmo direito que qualquer um tem de se desenvolver profissionalmente, ter a sua liberdade, exercer as atividades do seu interesse e ser respeitada por isso, essa onda de pensamento vai acabar se espalhando nos seios sociais, nas famílias amplas, e, por fim, no mercado de trabalho e na política.

Esperamos poder contribuir para essa mudança, batendo um papo sobre o que percebemos que pode ser mudado e como isso pode ser feito. 

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