Clara:

Essa semana, um dos assuntos que não poderíamos deixar de abordar é um tema que esteve presente nas conversas das pessoas nestes últimos dias: a violência sexual contra crianças. Isso, porque, como a maioria das pessoas deve ter visto, um caso de estupro de uma menina de 10 anos se tornou manchete no país, porque essa criança engravidou e teve uma autorização judicial a realizar o aborto.

Para começarmos a falar disso, é importante conceituarmos o que é, legalmente, a violência sexual, em qual tipo esse caso se enquadra e, também, quais as previsões legais que  autorizam o aborto. 

O primeiro dispositivo legal que irei ressaltar é o art. 217-A do Código Penal, que diz: 

“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”.

Esse é o artigo que trata do estupro de vulnerável, ou seja, qualquer conjunção carnal e ato libidinoso com menor de 14 anos já é considerado, automaticamente, ESTUPRO. Isso significa que não importa se o autor do crime alega que teve o consentimento da vítima, pois a lei determina que menores de 14 anos não são capazes de consentir. Sendo assim, não cabe qualquer questionamento ao redor de um suposto consentimento ou não das vítimas deste crime.

Outro ponto que deixarei aqui para que vocês discutam a respeito, Mari e Nina, é o fato de que no Brasil o aborto é permitido em alguns casos específicos previstos no artigo 128 do Código Penal: o aborto necessário (em que não é necessária sequer a anuência da gestante, tamanha a urgência de realizá-lo para salvá-la) e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (no qual é necessária a anuência da gestante ou de seus responsáveis, no caso de incapaz). Vejamos:

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:  (Vide ADPF 54)

     Aborto necessário

     I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

     Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

     II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

E em decorrência da ADPF 54, no caso de fetos anencéfalos, é possível a realização de aborto, também. 

Marina:

Realmente, Clara. E é importante percebermos alguns aspectos que a própria lei nos traz. Em primeiro lugar, o Código Penal fixou como marco, em diversas passagens, a idade de 14 anos como o marco do discernimento. Como você disse, não seria possível uma pessoa que não tivesse atingido essa faixa etária ter o discernimento suficiente para poder consentir. 

Isso se aplica em várias áreas da nossa legislação criminal, mas um dos exemplos é realmente a relação sexual. Uma pessoa com menos de 14 anos não pode consentir em participar em relação sexual de qualquer cunho.

Isso está tão pacificado que temos súmulas e artigos que deixam isso cristalino:

Súmula nº 593, STJ. “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”

E também, o próprio §5º do art. 217-A, citado por você, diz:

5º  As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.  (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)

Não interessa se a pessoa tiver um relacionamento prévio, não interessa se os pais sabiam e consentiram, não interessa se a vítima não era virgem, não interessa se a vítima era explorada sexualmente  (lembrando que exploração sexual infantil é crime e deve ser duramente combatida!).

Crianças e adolescentes menores de 14 anos não consentem e ponto final. Não importa quem era aquela pessoa, se o corpo estava “desenvolvido”, se a pessoa menstruou, se era homem ou mulher. Nada disso importa. A presunção de vulnerabilidade é absoluta nesse caso.

Outro aspecto que devemos levantar sobre o caso em específico que estamos tratando, e que você introduziu, Clara, é sobre o aborto legal. No ordenamento jurídico brasileiro, atualmente, o aborto é crime. 

No entanto, está havendo discussão em âmbito do Supremo Tribunal Federal, como você citou, na ADPF 42, se o autoaborto – modalidade em que a própria mulher pratica o aborto ou consente que outra pessoa o faça – foi recepcionado pela Constituição, ou seja, se é compatível com ela. 

O Código Penal é da década de 40, nossa Constituição veio muito depois. Por conta disso, os tribunais superiores estão sempre reavaliando se as normas anteriores a 88 devem ou não continuar no nosso ordenamento jurídico. 

Discussões à parte, o caso da criança de 10 anos não tem nada a ver com autoaborto. Isso porque, conforme a Clara já explicou, nós temos algumas hipóteses excepcionalíssimas que o próprio Código Penal permite que haja aborto,sendo que o caso dessa criança de 10 do Espírito Santo se encaixa na hipótese de aborto em caso de gravidez resultante de estupro.

Assim, se a gestante consentir, poderá abortar, caso a gravidez seja proveniente de um estupro. Se a vítima for INCAPAZ, como o caso, tendo em vista a tenra idade da menina, basta autorização de seu representante legal, no caso, seus pais e que poderá ser substituída por uma autorização judicial.

Em caso de aborto por gravidez resultante de estupro, qualquer prova é válida para a realização do aborto, como um boletim de ocorrência relatando o estupro. Não precisa haver intervenção do Judiciário . Até porque, se a autorização judicial sempre fosse necessária, em muitos dos casos, por conta do gigantesco número de demandas que os magistrados brasileiros possuem em suas mãos, até o processo ser julgado, o bebê vai ter nascido. É triste, mas é verdade. E a ideia é não traumatizar a vítima.

Não é digno (fere a dignidade da pessoa humana) obrigar alguém a levar a cabo uma gestação de um estuprador. Ver no rosto de seu filho a imagem do homem que a violentou, que praticou o mais bárbaro dos crimes contra ela. Ninguém pode ser obrigado a continuar uma gestação que surgiu contra a sua vontade, que veio da violência.

Temos mais uma modalidade, que você também citou, Clara: aborto de feto anencefálico – ou interrupção seletiva da gravidez.

Havendo malformação incompatível com a vida, não faria sentido obrigar a gestante terminar a gestação, se não há qualquer possibilidade de sobrevivência do feto. Depois de muito debate, o STF chegou à decisão que poderia haver, CASO A PESSOA QUEIRA, a interrupção da gestação. Lembrando que ninguém é obrigado a abortar. Aborta quem quiser – embora, na vida real, pessoas com condições financeiras privilegiadas abortem em silêncio, de forma segura, e pessoas com menos dinheiro morrem em abortos clandestinos, infelizmente, muitas das vezes.

Outras malformações incompatíveis com a vida também permitem o aborto, justamente por não haver expectativa de vida. Mas, nesses casos, por não ter previsão expressa legal, nem decisão vinculante do STF, será necessário autorização judicial.

Fiz esse panorama todo para concluir: não havia o que se discutir nesse caso. Não  era caso de aborto por mero capricho: era um aborto previsto de forma expressa no Código Penal. É direito da menina, caso quisesse – e ela quis -, havendo consentimento de seus pais, de realizar o aborto, e assim foi feito.

Temos que tomar muito cuidado para não deixarmos valores morais e religiosos, muitas vezes de cunho duvidosos, entrarem na frente nos direitos mínimos e nas garantias fundamentais que o Estado cuidadosamente nos garantiu como membros da sociedade.

Mari, você pode explicar um pouquinho para a gente sobre o aspecto cível do bebê que está sendo gestado, e os seus direitos, em comparação com o direito da criança?

Mariana:

Pois é Nina, é muito importante entendermos onde que a criança e o nascituro (o bebê que está sendo gestado) se encontram hoje no Direito brasileiro. 

Para isso, temos que lembrar que o nascituro, dentro do Direito Civil (art. 2º do Código Civil) não é visto como uma pessoa e não tem personalidade, ele é visto como uma expectativa, portanto, tem seus direitos postos a salvo. 

Em contrapartida, a criança tem na Constituição Federal direito à proteção integral de forma PRIORITÁRIA (a Clara explicou melhor isso no post inaugural do assunto) . 

Vejam que numa ponderação de direitos, ambos têm direito à vida: o nascituro, de ter a chance de nascer com vida e a criança de sobreviver. 

Falo da questão da sobrevivência da criança, visto que a gestação infantil é notoriamente de alto risco e tem grandes chances de não só o feto vir a óbito como também o corpo infantil não suportar uma gravidez.

Diante disso, entramos na ponderação dos direitos. Temos o direito da criança de sobreviver a uma gestação que a coloca em grave risco de vida e que já foi vítima de uma imensa falha social e familiar de não ter sido protegida de um estupro e um nascituro que ainda tem expectativa de nascer e sem saber se nascerá com vida.

Além disso, temos que pensar que a proteção integral da criança está disposta na nossa Constituição da República, enquanto o direito do nascituro é uma ressalva (diga-se de passagem bem confusa) no Código Civil. 

Na hierarquia das normas no direito brasileiro, as disposições constitucionais são superiores às disposições de leis ordinárias (o Código Civil é uma lei ordinária federal).

Colocando esses fatores na balança da ponderação, vemos que o direito da criança é superior ao do nascituro.  

Precisamos entender que essa ponderação de direitos é extremamente complexa, mas é fundamental que coloquemos aqui que, sim, tanto o nascituro quanto a criança têm seus respectivos direitos, mas numa ponderação técnica, o direito da criança se sobrepõe ao do nascituro. 

Me dói muito ver, antes de qualquer coisa, como que a sociedade, a família e o Estado (que demorou muito para solucionar essa questão) falharam em prestar aquilo que se comprometeram a fazer por essa criança que é garantir a sua proteção integral. 

Esperamos, que os responsáveis sejam punidos, não só quem a estuprou, mas também as pessoas que violaram o segredo de justiça que teria preservado essa criança de todo esse desgaste em decorrência dessa exposição.

Marina:

Verdade, Mari. É muito triste que tenhamos que enfrentar uma questão delicada como essa, mas temos que lembrar e ressaltar que isso é muito comum. Meninas e meninos são estuprados diariamente dentro de suas próprias casas, inclusive por familiares, como foi o caso noticiado pela mídia – nós não iremos citar nomes nem qualquer elemento de identificação, visto que zelamos pela PROTEÇÃO das crianças e dos adolescentes, e qualquer atitude em modo contrário é criminosa.

O caso que decidimos tratar foi muito sério, e ganhou a atenção da mídia pela forma como foi tratado. Os ânimos acalorados tiraram de vista o real problema: o que podemos fazer como sociedade, como juristas, e também qual deve ser a participação do Estado nas políticas públicas para reduzir, e, ao fim, exterminar, essa violência sexual contra crianças e adolescentes?

Somos responsáveis pelas crianças e pelos adolescentes, precisamos zelar por eles, ensiná-los. Mostrar que são responsáveis pelos seus próprios corpos e que ninguém pode tocá-los sem autorização. Pequenas atitudes podem fazer com que os pais ou cuidadores consigam identificar situações de violência mais cedo, ou, se possível for, evitar que essas pessoas em formação sejam agredidas.

Esse assunto é um verdadeiro tabu. Ninguém nunca quer acreditar que alguém teria a coragem de fazer tamanha atrocidade contra pessoas tão pequenas, mas acontece, e de forma mais frequente do que imaginam.

Independentemente de discussões sobre mulheres e abortos, e o direito que devem ter a seus próprios corpos, dentro de sua autonomia privada, é preciso que não nos esqueçamos que a jovem vítima de estupro por seu tio tinha o direito explicitado no Código Penal que permitia seu aborto. Entendimentos pessoais do que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é pecado e o que não é, não podem avançar a ponto de obstaculizar nenhum tipo de direito, muito menos o de uma menina de 10 anos, que precisava e ainda precisa ser cuidada, apoiada, amada, e a ela fornecidas ferramentas para superar esse horrível trauma que vivenciou. 

Por aqui, torcemos para que ela esteja bem, e que as pessoas respeitem a sua já devassada privacidade e intimidade.

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