Ludimila, nos conte um pouco sobre o movimento “body positive” e qual é o impacto que ele tem tido na nossa sociedade?

Inicialmente, cabe dizer que o movimento body positive, apesar de ter maior alcance, sendo o mais conhecido ou mais falado, não é o único movimento contra a (o)pressão estética. Além dele, temos, dentre outros, o movimento body neutrality, que prega a neutralidade do corpo e dos sentimentos e noções sobre o corpo e, mais importante, temos o movimento gordo, que hoje é o que lidera a luta pelo direitos das pessoas gordas no Brasil e no mundo. No entanto, o movimento body positive traz uma noção, em especial para mulheres, que seus corpos são bonitos, são bons, são válidos. Informam que o corpo serve um propósito, que ele é a nossa casa, e, sendo assim, não importa muito o seu tamanho, a sua forma, a sua cor, a sua capacidade. Nisso o movimento insere na sociedade, nas mulheres especialmente, a noção de que o suposto corpo “padrão” é impossível e inalcançável, com isso trazendo maior liberdade no que tange a nossos corpos.

Em quais setores da nossa sociedade vemos mais traços da gordofobia?

Possível dizer que no acesso à saúde, em especial no tratamento de pessoas gordas por profissionais de saúde.

Há diversos casos que comprovam que a pessoa gorda tem seu direito à saúde ferido com constância porque, em geral, a comunidade médica acredita que todo e qualquer problema que aflija uma pessoa gorda será curado com emagrecimento. Isso acontece também com fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras, profissionais de educação física. No entanto, importante ressaltar que a pessoa gorda média ou maior sofre diariamente com a ausência de acessibilidade, seja no transporte – do ônibus ao avião, seja na cadeira do trabalho que não a suporta de maneira confortável, qualquer lugar que possua catraca, na escola ou universidade, no bar, cinema ou teatro. O acesso é reiteradamente negado à pessoa gorda e o pensamento comum ainda é o de que não é necessário adaptar o espaço ou a sociedade aos corpos, e sim que os corpos devem se adaptar aos espaços. O movimento gordo vem travando uma luta muito importante para que os espaços e a sociedade se adequem aos corpos e possibilitem a todos os indivíduos o gozo de seus direitos básicos.

Quais são os projetos de lei que envolvem esse tema que mais chamaram sua atenção e por que?

Temos um histórico de diversos projetos de lei (PL), mas muitos infelizmente estão arquivados. No Senado Federal temos hoje o PL 3461/2020, que busca proibir e criminalizar cobrança de valor adicional para pessoas obesas em transportes e eventos culturais, e isto definitivamente também trata de acessibilidade. Há projetos de leis infelizmente arquivados que buscavam instituir a obrigatoriedade de instalação de leitos e mobiliário que comportassem pessoas obesas em estabelecimentos de saúde das redes pública e privada. Com isso eu gostaria de ressaltar que o direito à saúde constitucionalmente assegurado a todas as pessoas não pode ser abstrato, como acontece hoje. Por isso os PLs 6509/2013 e 7527/2014, que buscavam garantir o acesso à saúde por parte das pessoas gordas, foram dois dos mais importantes propostos até hoje. Apesar de arquivados, o movimento segue lutando para que se aprove uma lei federal nesse sentido de assegurar às pessoas gordas o direito à saúde.

Ressalto que, no que tange a leis, em 2019 foi aprovada na Bahia a Lei 23.507/19 instituindo o dia 10 de setembro como Dia Estadual de Conscientização e Combate à Gordofobia. Parece algo pequeno, mas a intenção da lei é exatamente trazer à tona o debate sobre gordofobia. No Rio de Janeiro há um decreto de 2019 (45.682/19) que estabelece que todos os assentos de transportes públicos são preferenciais, incluindo pessoas obesas na classe beneficiada. No entanto, a ideia de que o corpo gordo é errado faz com que a lei não seja cumprida. O preconceito é tamanho que mesmo projetos de lei que buscam assegurar os direitos das pessoas gordas por vezes falam em “epidemia da obesidade”. 

Nas suas pesquisas, você percebeu alguma mudança dentro do Poder Judiciário no sentido de proteger mais e melhor as pessoas gordas?

Ainda há pouca jurisprudência que discuta este tema, mas a meu ver, o Judiciário segue engessado e preconceituoso.

Há diversos julgados trabalhistas em que o empregador é condenado a pagar danos morais à empregada – quase 100% dos casos envolve mulheres – por violência psicológica praticada em que a mulher era chamada de gorda, equiparada a animais e ouvia diversos absurdos. Porém ainda são poucos e os valores baixos.  Recentemente um homem foi condenado ao pagamento de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos e Coletivos em uma ação civil pública que buscava reparar os danos feitos pelo que foi intitulado como “Rodeio das Gordas”, um suposto evento esportivo em que os participantes montavam mulheres gordas, como se gado fossem, praticando nítida violência contra essas mulheres. Dada a gravidade da situação e o dano efetivamente causado pelos organizadores, o valor arbitrado como pena é baixo.

As abordagens que você tem visto da gordofobia, dentro do Legislativo e do Judiciário, tem se mostrado efetivas?

Não. Definitivamente não.

Em especial no que tange ao Legislativo, uma vez que a pessoa quando chega ao Judiciário já passou pela humilhação, situação vexatória ou teve algum de seus direitos ceifados. É necessária uma articulação do Legislativo para prevenir os tipos de condutas que colocam a população gorda em situações de perda ou não garantia de algum direito.

Por que você acha que essa pauta parece ser, sempre, deixada para depois de outras pautas de diversidade?

A gordofobia também é uma violência de gênero. Em sua absoluta maioria quem sofre gordofobia são as mulheres.

Por ainda vivermos em uma sociedade machista e misógina, apesar de toda a luta do movimento feminista, as questões são endereçadas uma a uma e então ganham força. A gordofobia ainda tem o agravante de ter aval da comunidade médica, que considera a pessoa gorda uma pessoa doente – e aqui não entrarei na extensa discussão acerca da obesidade. Esse discurso dá força ao preconceito e reitera a ideia de que dentro do corpo gordo há uma pessoa descuidada, sem vaidade, sem preocupação com a saúde e digna de ser marginalizada.

Você vê alguma diferença na gordofobia sofrida por mulheres e homens?

Sem sombra de dúvidas.

A pressão estética sofrida pelas mulheres ainda é muito maior e mais ampla que a sofrida pelos homens – mesmo os homossexuais – uma vez que ela é secular. Por consequência, a gordofobia sofrida por mulheres costuma acompanhar maior humilhação, uma vez que a mulher tem uma obrigação social de permanecer magra e jovem. Tudo que lhe acontecer de ruim, como mulher gorda, será percebido como consequência da forma de seu corpo. Aqui inclui-se violência doméstica – seja moral e psicológica ou física e até patrimonial, violência obstétrica, e violência moral no trabalho. Mas essa lista é grande, já que a sociedade enxerga o corpo da mulher gorda como público e, portanto, passível de comentários e violências diversas.

Você pode nos citar formas de como a sociedade pode melhorar em relação à gordofobia?

O debate é fundamental.

É necessário admitir que a gordofobia é um problema sócio-cultural e que, portanto, tem que ser enfrentado. Não basta que a Constituição Federal estabeleça que todos somos iguais. Precisamos garantir essa igualdade. Desconstruir a ideia de que todo corpo gordo por si só é doente é o primeiro passo. Além disso, por óbvio, é preciso que pessoas vistas como padrão busquem informação e estejam dispostas a abrir mão de certos privilégios, aliando-se à causa

A gordofobia está relacionada a algum outro tipo de marginalização?

Como tudo, classe e raça também perpassam a questão da gordofobia.

A marginalização é muito maior entre mulheres negras periféricas ou de classe baixa, que enfrentam gordofobia diariamente, ainda que pelo ato de ter que passar em uma catraca ou não ter condições de pagar o preço de roupas maiores. Essas mulheres serão vistas como ainda mais dissonantes, uma vez que a mulher negra é ainda mais objetificada que a mulher branca, tendo o padrão sido estabelecido não apenas como magra, mas curvilínea. Assim, essa mulher fere a ideia da corponormatividade que, diga-se de passagem, é branca.

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