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A SITUAÇÃO DA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Sabemos que o tema “aborto” é bastante delicado e controverso. As discussões são sempre extremamente polarizadas, sendo raro encontrar uma posição intermediária.

Cumprindo nosso propósito de trazer conhecimento jurídico de forma acessível, é importante entendermos o que é aborto, em quais hipóteses ele é permitido no Brasil, e “em que pé” está a discussão a respeito da recepção ou não do autoaborto pela Constituição da República de 1988.

Na verdade, há diferença entre aborto e abortamento, embora em termos leigos as pessoas não façam essa diferenciação – inclusive o próprio Código Penal faz confusão.

Abortamento é o ato de expelir o produto de gestação, enquanto aborto é o próprio produto expelido. 

Usaremos os termos como sinônimos, já que é o que se verifica na prática. O aborto é a morte do concepto (seja o ovo, embrião, ou feto, não fazendo diferença qual a idade gestacional para a classificação) ou a expulsão violenta seguida de morte.

Para a obstetrícia, aborto será até 20 ou 22 semanas da gravidez., desde que o feto tenha peso menor que 500g. Normalmente, considera-se 20 semanas de gravidez, mas pode chegar a 22 semanas, desde que o feto tenha peso menor que 500g.

Esse limite não é utilizado no Direito, que considera que em qualquer fase da gestação já haveria a configuração do aborto.

Temos 3 crimes de aborto no ordenamento jurídico, considerados crimes contra a vida:

  • Art. 124 – Provocar aborto (aborto provocado ou autoaborto) em si mesma ou consentir que outrem lho provoque (aborto consentido);
  • Art. 125 – Provocar o aborto sem o consentimento da gestante; (aborto sofrido);
  • Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante; (aborto consentido, mas visto sob o prisma do terceiro, de quem está provocando o aborto na gestante);

Temos também duas hipóteses que autorizam o aborto, segundo o Código Penal, que são causas de exclusão da ilicitude, previstas no art. 128:

Art. 128 – Não se pune aborto praticado por médico:

I- Se não há outro meio de salvar a vida da gestante;


Esse é o chamado aborto necessário, profilático – o termo vem de prevenção, pois se busca prevenir o risco à vida da mãe – e também é chamado de aborto terapêutico para a Medicina Legal, já que se trata de um tratamento para tratar condição que está colocando a vida da mãe em risco.

A segunda possibilidade também está no art. 128 do Código Penal:

II- Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.

É o chamado aborto humanístico, humanitário, ético, sentimental, realizado por meio do consentimento. 

Há uma hipótese admitida pela jurisprudência, que foi decidida em 2012, na ADPF 54, e que diz respeito ao feto anencefálico. 

Foi realizada audiência Pública, em que foram coletados dados médico-científicos a respeito das complicações maternas, sob a alegação de que obrigar a mãe a manter a gestação até o termo seria uma forma de tortura.

A premissa seria a seguinte: para se ter um crime de aborto, é necessário ter potencialidade de vida extrauterina. Se não houver, não há que se falar em aborto, já que apenas um feto com capacidade de ser pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto.

De acordo com o Ministro Marco Aurélio do STF, “anencefalia e vida são termos antitéticos”, incompatíveis. O anencéfalo foi equiparado a um morto encefálico – embora isso não seja propriamente correto -, com o entendimento de que seria admitido “aborto seletivo”, antecipação terapêutica do parto, interrupção seletiva da gestação que não está enquadrada no crime de aborto.

Devemos falar também sobre a outra situação que introduzimos, a situação da recepção ou não no ordenamento jurídico do crime de autoaborto, que está sendo discutido em sede do STF. É importante entendermos que quando a lei (no caso, o Código Penal) é anterior à Constituição, não é possível se falar em inconstitucionalidade, já que a Constituição de 88 ainda não existia. É realizado um juízo de recepção ou não recepção, para se averiguar se a norma é compatível ou não com a CRFB/88, e, portanto, se pode ou não continuar no nosso ordenamento jurídico.

Está em trâmite a ADPF 442 no STF, em que está havendo análise do aborto sob o prisma da psicologia, sociologia e da seara médica. A discussão é se o art. 124, intitulado autoaborto, realizado pela própria gestante, foi ou não recepcionado pela CRFB/88. 

A discussão está em andamento, ainda não tendo chegado a um resultado final, mas no HC 124306, no STF, o Ministro Barroso trouxe diversos fundamentos extremamente importantes a serem considerados, quais sejam:

  1. Liberdade da mulher, no exercício de sua autonomia privada, para decidir se leva adiante ou não a sua gravidez 
  2. Liberdade reprodutiva 
  3. Liberdade de definir o planejamento familiar 
  4. Dignidade desta mulher em definir o seu projeto de vida boa 
  5. Isonomia entre mulheres e homens 
  6. Abandono de concepções moralistas na construção de normas jurídicas de caráter geral e irrestrito 

Esses argumentos são intrinsecamente relacionados à autonomia privada da mulher e o seu direito de decidir o que será realizado com sua vida e com seu próprio corpo.

Sabemos que o aborto é realizado no Brasil diariamente por um número enorme de mulheres, independentemente de sua criminalização ou não. No entanto,é importante discutirmos as diferenças dos abortos realizados por pessoas com condição econômica mais favorecida e pessoas que não possuem recursos suficientes para realizar o procedimento de forma segura, o que por muitas vezes acaba levando a seu óbito.

Nesse julgamento, o Ministro Barroso adentrou em uma questão pouco ventilada nas discussões que envolvem o tema aborto: a análise do princípio da proporcionalidade. 

Este princípio visa orientar o legislador que cria o tipo penal (art. 5º, II da CF) a balizar a restrição de direitos fundamentais que estão em jogo para que aquela conduta tipificada restrinja direitos de forma equilibrada, justa e sem excessos. 

Para isso, é preciso analisar três subprincípios derivados do princípio da proporcionalidade: 

Princípio da adequação: este princípio visa analisar em que medida a criminalização do aborto protege a vida do feto. O que o Ministro levantou, com base em dados na OMS (fonte: Gilda Sedgh et al., Abortion incidence between 1990 and 2014: global, regional, and subregional levels and trends, The Lancet, vol. 388, iss. 10041, 2016.), é que em países onde o aborto é criminalizado as taxas de aborto seguem sendo altas, por vezes, mais altas do que em países onde não há a criminalização do aborto. Esses dados trazidos pelo Ministro também mostram que em países onde o aborto é praticado ilegalmente há uma grande consequência na saúde pública, envolvendo as mulheres que se submetem a esses procedimentos e acabam morrendo ou enfrentando sérias sequelas. Então, ele concluiu o seguinte: “a criminalização do aborto não é capaz de evitar a interrupção da gestação e, logo, é medida de duvidosa adequação para a tutela da vida do feto”.

Princípio da necessidade: esse princípio visa averiguar se existe alguma possibilidade alternativa à criminalização do aborto que proteja os interesses do nascituro, bem como gere menos impactos nos direitos fundamentais da mulher gestante. Como dito anteriormente, a criminalização do aborto gera diversas consequências para mulheres, como a violação da autonomia, da integridade física e psíquica e os direitos sexuais e reprodutivos, também viola o direito a igualdade de gênero, e produzindo impacto discriminatório sobre as mulheres pobres. O ministro apresenta duas soluções alternativas, que combinadas, na visão dele, podem justificar a desnecessidade da criminalização do aborto como a descriminalização do aborto até o primeiro trimestre, considerando que esse é período em que não há a formação completa do córtex cerebral, não havendo possibilidade nenhuma de sobrevida extrauterina e, baseado no fato de que os abortos são realizados, em geral, pela ausência de possibilidade financeira, associada ou não, pela mudança na vida gestante, em especial no aspecto da carreira, é preciso criar políticas públicas para o amparo de mulheres grávidas, antes, durante e após a gestação, não deixando de lado as políticas de prevenção à gravidez indesejada, como educação sexual, distribuição de métodos contraceptivos gratuitos etc. Assim, o Ministro conclui: “Logo, a tutela penal também dificilmente seria aprovada no teste da necessidade”.

Princípio da proporcionalidade em sentido estrito: este princípio visa analisar em que grau as restrições aos direitos fundamentais das mulheres decorrentes da criminalização são ou não compensadas pela proteção à vida do feto. Como foi visto, há clara violação de direitos fundamentais das mulheres gestantes. A pergunta é: na prática, ainda que exista a violação dos direitos das mulheres, o bem jurídico que se busca proteger com a criminalização do aborto está sendo de fato protegido? O Brasil é extremamente carente de pesquisas oficiais sobre o tema, mas pelas pesquisas autônomas feitas e publicadas, é possível se verificar que NÃO. Não estamos protegendo os fetos com a criminalização do aborto, independente da criminalização, mulheres continuam praticando aborto ilegalmente aos montes no Brasil. Nesse sentido, o Ministro Barroso conclui “[…] para que não se confira uma proteção insuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais desenvolvido”, ou seja, nos casos em que a gravidez não esteja tão avançada, no primeiro trimestre.

Para entender a importância da análise desse princípio, bem como o motivo pelo qual é tão importante que essa questão seja analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que dentre as diversas atribuições que possui, uma delas é justamente ser aquele analisa normas e decisões sob a ótica constitucional. 

O Código Penal Brasileiro está em vigor desde 1940 e os artigos que envolvem a criminalização do aborto estão intactos desde então. Por essa razão, são artigos em que, no momento de sua criação, o legislador da época não teve a possibilidade de analisar se a norma criada seguia as diretrizes constitucionais modernas que foram criadas 48 anos depois com a Constituição de 1988. 

Assim, é fundamental que essas normas sejam revistas sob um crivo constitucional mais atual e por que não, revistas ou reanalisadas sob esse novo aspecto, sempre visando uma solução que proteja efetivamente o direito a ser protegido, bem como gere menos impacto aos direitos fundamentais adjacentes. 

Por fim, destaca-se um pequeno trecho da decisão do Tribunal Federal Alemão, quando da análise da criminalização do aborto,  nos seguintes termos: “O sigilo relativo ao nascituro, sua impotência e sua dependência e ligação única com a mãe, as chances do Estado de protegê-lo serão maiores se trabalhar em conjunto com a mãe”.

É importante ressaltar que devemos acompanhar o julgamento a respeito do tema em âmbito do STF, já que diversos argumentos extremamente construtivos vêm sendo desenvolvidos, sendo de suma importância o debate, especialmente em uma sociedade plural como a brasileira, pautado em argumentos técnicos e científicos e afastados, no máximo possível, de pensamentos de cunhos morais ou ideológicos, que não devem nortear nossas políticas públicas. 

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