Vamos conversar sobre isso?

Para o bate papo dessa semana, decidimos convidar nossa querida colega de faculdade e amiga, a Dra. Fernanda Rezende. Ela tem uma série de vídeos na conta de instagram dela, em que ela explica as questões judiciais de processos que ganham destaque na mídia por envolver famosos. 

O caso que vamos debater hoje foi televisionado e aconteceu durante a 12ª edição do reality show Big Brother Brasil. 

Fernanda, nos conte um pouco o que aconteceu na ocasião e qual foi no desfecho do caso? 

Fernanda Rezende

Advogada e Convidada da semana

Costumo dizer que o BBB é uma experiência antropológica para quem assiste e, principalmente, para quem participa. Tudo é milimetricamente pensado e orquestrado para que os participantes estejam sempre no seu limite, seja ele qual for. Limite da dor, do amor, da proteção, da amizade, do cansaço. 

O programa é todo projetado para brincar com as emoções de quem participa e, claro, render altíssimos pontos de audiência por isso. Mas há casos em que limites são ultrapassados, o que não se pode admitir nem quando submetidos à situações de estresse. Foi o que aconteceu na 12ª edição do reality.

Numa madrugada de confinamento, após uma das famosas festas do programa, regadas à bebida alcoólica e vontade de aliviar as tensões, um dos participantes, o modelo Daniel Echaniz,  deitou-se ao lado de Monique Amin, sob o famigerado edredom. 

Quem acompanhou a cena ao vivo, pela internet ou pelo pay-per-view, percebeu movimentos sexuais. O que muita gente também percebeu e o cerne da questão, é que Monique estava completamente embriagada e aparentemente dormindo. Ela não tinha qualquer poder de decisão sobre suas vontades e ações naquele momento. Monique estava vulnerável às investidas de Daniel. 

À época, a polícia compareceu ao Centro de Produções da Globo, onde é gravado o programa, para apurar se de fato houve estupro, mas o caso foi arquivado. Com isso, a emissora optou por eliminar o participante do reality, sob a alegação de “grave comportamento inadequado”.

Após a eliminação do participante, Monique explicou para os colegas de confinamento que havia combinado de dormir com Daniel e que se lembra apenas de terem se beijado uma vez e trocado carícias sob o edredom, momento em que ela se afastou e disse “para, para, chega” e  logo após adormeceu. Nesse momento, ela afirma que outro colega entrou no quarto e Daniel saiu. Quando acordou, Daniel estava dormindo em outra cama.

Tão logo Daniel se desligou do programa, foi aberto um inquérito policial para apurar o caso. As acusações foram feitas pela modelo Tatiane Eyng, que alegou também ter sido vítima de estupro por Daniel. 

Apesar de o fato ter sido televisionado e assistido por milhares de pessoas, os envolvidos negaram qualquer relação sem consentimento e o inquérito policial foi arquivado por insuficiência de provas. 

Anos depois do fato, Monique deu uma declaração em que sugeriu que a Globo não deu a devida repercussão ao caso e que se sentiu muito mal com o ocorrido. Ela ainda deu declarações que havia negado as acusações contra Daniel simplesmente porque havia consentido inicialmente, beijando-o e trocando carícias.

Mari

É por essa ausência de conhecimento sobre a linha entre o que é ou não estupro, que muitas mulheres deixam de denunciar situações como essas. Por essa razão, que nós trouxemos esse tema essa semana para deixar bem claro quando essa linha é ultrapassada e vira estupro. 

Inclusive, é bom entender que boa parte de vítimas de situações como as de Monique, deixam de denunciar por: (a) não entender que aquilo é estupro; (b) não se lembrarem do que realmente aconteceu – no caso dela, foi gravado -, mas muitas mulheres acordam no dia seguinte sem ter certeza do que aconteceu; e (c) medo de sofrer algum tipo de retaliação dos amigos, da família ou da própria pessoa, do tipo: “ah! Mas também, porque que bebeu esse tanto?; “Qual que é a necessidade disso?”; “Você estava querendo ficar vulnerável mesmo!”. 

Agora, Marina, seria interessante você nos apresentar uma análise do caso de forma detalhada e elucidar exatamente o momento em que a troca de carícias consentida virou estupro. 

Nina

Bom, meninas. Esse caso foi especialmente triste, porque ilustra uma situação que acontece diariamente com muitas mulheres. Como você falou, Mari, as pessoas não entendem muito bem o que é estupro e o que não é. E não é culpa delas, até porque até pouco tempo se entendia, por exemplo, que a mulher era obrigada a transar com o marido quando ele quisesse, por se tratar de um dever marital. Também podemos lembrar que até recentemente só “mulher honesta” podia ser estuprada. Mas isso é assunto para outro dia – inclusive, falamos sobre cultura de estupro em outro post (clique aqui).

Em relação ao consentimento no caso de relação sexual, esse não necessariamente precisa ser explícito, podendo ser implícito também, no entanto, para consentir é preciso estar em pleno gozo de seu discernimento. A lei nos traz hipóteses em que a pessoa não está autorizada a consentir validamente, como em caso de menor de 14 anos de idade ou alguém que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”, ou alguém que “por qualquer outra causa não pode oferecer resistência”.  

Quando uma pessoa está dormindo, inconsciente, embriagada, drogada ou qualquer coisa do tipo, não está em um contexto em que é possível consentir validamente. Ainda que a mulher quisesse consentir, ela não poderia, já que não tem naquele momento o discernimento suficiente para tanto.

Mesma coisa com pessoas menores de 14 anos, mesmo que “queiram”, não podem consentir validamente, ainda que tenham experiência sexual pretérita ou estejam em relacionamento amoroso com o agressor. Isso é inclusive entendimento sumulado pelo STJ e está expresso no Código penal. Também já falamos sobre isso (clique aqui).

Voltando para o caso, como você relatou, Fernanda, a vítima nem sequer se recorda do que aconteceu, somente lembrando que pediu para que o agressor parasse as investidas e depois cair no sono. No entanto, o ato foi televisionado e apesar de não ser possível vermos o que aconteceu embaixo do edredom – como o Direito Penal é pro reo, o inquérito acabou sendo arquivado por insuficiência de provas -, ao que se indicava, no mínimo atos libidinosos foram praticados, o que entra nesse conceito de estupro de vulnerável, já que o art. 217-A apenas dispõe: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso”.

Ninguém é obrigado a engajar em relação sexual com outra pessoa, nem mesmo dentro de um casamento, e caso a vítima não esteja com o necessário discernimento para a prática do ato, ainda que momentaneamente – o que chamamos de vulnerável momentâneo -, não se pode aproveitar desse estado de total fragilidade para engatar em uma relação sexual.

Muitas mulheres ainda não sabem que essas situações tornam a relação sexual uma prática criminosa, já que não estão em uma possibilidade normal de compreender a situação. Clara, você já ouviu casos semelhantes em que mulheres estavam sendo violentadas sexualmente sem nem mesmo ter conhecimento a respeito?

Clara

Isso é algo mais comum do que imaginamos. Essa, infelizmente, é uma realidade vivida por muitas mulheres. 

É algo realmente impressionante percebermos, quando começamos a tratar de assuntos dessa natureza com amigas, que conhecemos várias mulheres que já foram estupradas e sequer conseguiram perceber a violência sofrida. Muitas, inclusive, sofrem a violência nas mãos de namorados, maridos e homens que consideravam amigos. 

O que eu percebo em todos os relatos que já ouvi é que há uma sensação ruim e que as mulheres não conseguem identificar a origem desse sofrimento. Eu já ouvi: “eu me senti compelida, mal, tive vergonha, medo, dor, mas não entendia porquê”. A verdade é que custamos a perceber o porquê. Vivemos em uma sociedade que objetifica do corpo feminino, uma estrutura machista e que se alimenta de uma cultura de estupro, e isso torna o trabalho de identificar violências sexuais sofridas por mulheres um trabalho MUITO DIFÍCIL. 

É por isso que seguimos abordando assuntos como esse. Nosso trabalho é nos ajudarmos a identificar essas violências, a denunciá-las e a entendermos que: NÃO ESTAMOS SÓ.

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