A perda do poder familiar é uma medida extrema e por essa razão, ela somente ocorre quando há uma grave violação dos direitos da criança ou do adolescente. Mas antes de adentrar na perda do poder familiar, é preciso entender o que é o “poder familiar”.

Em resumo, esse instituto é uma versão atualizada, revisada e melhorada do “pátrio poder”. Esse que é muito falado pelos avós de hoje em dia, era literalmente o poder que os pais (especialmente o pai) tinha sobre os filhos que deveriam ser submetidos a qualquer coisa que aquele pai determinasse, de modo genérico, era como se o pai fosse dono deles, igual se é dono de um cachorro ou de uma escova de dentes. 

o poder familiar é poder-função ou direito-dever, nas palavras de Maria Berenice Dias, é o poder exercido pelos genitores (aqui, pelos pais independente do gênero e da composição familiar) e que serve ao melhor interesse do (s) filho (s). Essa virada aconteceu em razão do princípio da proteção integral do integral.

E como já foi falado no Conversa com Elas diversas vezes, é dever do Estado, da sociedade e da família zelar pelo melhor interesse das crianças e dos adolescentes. Desse modo, a violação de qualquer direito deles, bem como o descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar (art. 1.634 do Código Civil), são passíveis de sanção. Essa sanção vai desde uma advertência e/ou multa, até a perda do poder familiar. 

É bom deixar claro que existe uma diferença entre perda do poder familiar e extinção do poder familiar. A extinção se dá com a morte, a emancipação ou pela maioridade (art. 1.635, incisos I a III do Código Civil). Já a perda, é a sanção por infração de um dever dos pais ou violação de um direito da criança ou do adolescente (art. 1.635, V do Código Civil) e ela sempre ocorre por meio de uma decisão judicial. E conforme explica Maria Berenice Dias “há uma impropriedade terminológica na lei que utiliza indistintamente as duas expressões”*.

Existe um rol no art. 1.638 do Código Civil, que não é taxativo, ou seja, pode abranger outras situações parecidas, que dispõe quais seriam as atitudes dos genitores que levariam à perda do poder familiar. São elas: 

I – castigo imoderado;

II – abandono;

III – prática de atos contrários à moral e aos bons costumes; 

IV – reiteração de falta aos deveres inerentes ao poder familiar. 

Parágrafo único**. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que:     

I – praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar:  

  1. a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; 
  2. b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão;    

II – praticar contra filho, filha ou outro descendente:  

  1. a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher;    
  2. b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.   

Quem nasceu até 1999 e era uma criança “levada”, bagunceira ou mesmo atrevida, como a autora deste artigo, certamente já levou algumas palmadas corretivas dos pais. Naquela época, o uso da violência como correção era algo corriqueiro e comum, apesar de alguns pais e mães já se sentirem extremamente culpados por isso (tipo a mãe da autora, que acabou optando por outros métodos educativos).

Seguindo essa linha temporal, é bom ressaltar que o Código Civil atual é de 2002, ou seja, ele é posterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente que é de 1990, por essa razão, o artigo 1.638  já foi estruturado seguindo a lógica dos direitos estabelecidos no ECA e aqui cabe destaque aos artigos 17 e 18 do ECA que falam do direito à integridade física e proteção à qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Apesar disso, o inciso I do art. 1.638 do CC fala apenas do castigo imoderado, ou seja, é possível entender uma tolerância ao castigo moderado, o que é algo extremamente subjetivo e muito amplo, o que abre margem para que alguns castigos violentos – mas “com moderação” – tenham certa aceitação pelo Judiciário. 

Vale ressalvar que alguns doutrinadores, como Maria Berenice Dias, entendem que com a vigência da Lei 13.010 de 2014 a “Lei da palmada” (que foi bem explicada e detalhada pela Marina no aprendendo com elas) teria revogado o inciso I do art. 1.638 do Código Civil. Contudo, é só uma mera interpretação e ela não é absoluta, há doutrinadores que divergem desse posicionamento. 

O que é possível retirar de toda essa explicação? 

Que o Brasil vem de uma cultura muito longa de tratamento omisso e violento com as crianças e os adolescentes, foi uma luta enorme para se incluir o art. 227 na Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, e agora, é preciso quebrar essa cultura, privilegiar novas técnicas de educação que não envolvam a violência, seja ela moderada ou não. 

E enquanto a legislação não muda de forma expressa, é preciso ter em mente que o castigo imoderado é sim causa de perda do poder familiar, qualquer violência contra uma criança e um adolescente deve ser denunciada para o Conselho Tutelar ou mesmo para o Ministério Público, que o ente competente para mover esta ação. 

É um dever de todos proteger e zelar pelo interesse das crianças e adolescentes que residem nas terras brasileiras.

*DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

** http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13715.htm#art4

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

 Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

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