Esse artigo foi escrito em parceria pela Mari e pela Nina.

 

O Código Civil de 1916 vigorou por muitos anos, até ser substituído pelo Código Civil de 2002. E antes da entrada em vigor da Constituição da República, a legislação civilista, em especial o próprio Código Civil (CC) eram o centro do ordenamento jurídico, a legislação mais importante.

Os rumos foram alterados com a chegada da Constituição de 88, um documento extremamente importante para o povo brasileiro, especialmente por assegurar direitos inéditos e também por trazer uma especial força normativa à Constituição, suas normas e também seus princípios.

Mas até 88, as coisas eram muito diferentes para a mulher. Isso se dava porque dentro do núcleo familiar, vigorava o pátrio poder. A respeito do pátrio poder, nos ensina Cesar Peghini

“O pátrio poder foi instituído pelo Código Civil em 1916. Era assim chamado pois tinha neste poder a total atribuição e responsabilidade ao homem como gestor, em uma função de hierarquia. O homem ‘da casa’ era então o responsável por todas as decisões afins à sua família”.

A atuação do homem era de gestor, provedor, líder, chefe do lar, responsável pelas obrigações financeiras da residência e também o controle sobre sua própria esposa. Os tempos eram muito diferentes, e, consequentemente, a nossa legislação também o era.

Em diversas passagens do Código Civil de 1916, que, insisto, vigorou até a chegada do CC de 2002, era possível constatar o papel de pouco destaque e autonomia ocupado pela mulher. Um exemplo disso é que as mulheres, nos termos do Art. 6º da revogada legislação, eram consideradas relativamente capazes, assim como aquelas pessoas que ainda não haviam alcançado a maioridade penal ainda. Isso mostra que a mulher tinha a mesma autonomia que um adolescente de 16 anos.

No artigo 36, que fala do domicílio dos incapazes, havia a previsão que o domicílio da mulher, em regra, era o do marido. Havia prazo prescricional de 10 dias após a celebração do casamento para que o marido anulasse o matrimônio contraído com “mulher já deflorada”, ou seja, que não fosse mais virgem. Era uma das hipóteses de erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge o “defloramento da mulher, ignorado pelo marido”.

Havia previsão de ação específica por parte do marido ou seus herdeiros para anular eventuais atos praticados pela mulher sem o consentimento do marido ou sem suprimento judicial.

A idade núbil (ou seja, mínimo de idade para casar) da mulher era de 16 anos, dos homens, 18 anos. A mulher era considerada “pronta” para contrair núbias mais cedo. Já se preparava para casar e ter um marido!

O CC/16 trazia expressamente em seu art. 233 que o marido era o chefe da sociedade conjugal, sendo responsável pela administração dos bens particulares da mulher em determinadas hipóteses.

Sem autorização, a mulher não podia exercer profissão, litigar em juízo civil ou comercial (em regra), aceitar mandato, dentre outros.

Podemos perceber que a submissão era marcante. Isso mudou  – pelo menos em tese – com a Constituição de 88, como mencionado. No caput do art. 5º, que trata de direitos e garantias fundamentais, há a previsão de que todos são iguais perante a lei. Mas o próprio constituinte imaginou que só isso não bastava, até porque uma igualdade formal não adiantaria de nada. 

O primeiro inciso do rol dos direitos fundamentais, no art. 5º, reforça: “I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”. A partir de então, uma nova leitura foi necessária em relação aos direitos e deveres das mulheres, sob a ótica da Constituição de 88. 

Toda essa situação de “cidadã de segunda linha” onde as mulheres se encontraram por muitos anos, as colocaram em lugar em que, falar de uma violência sexual ocorrida dentro de uma relação conjugal, era algo completamente absurdo.

Um exemplo da teledramaturgia que retrata a realidade de muitas mulheres durante os anos iniciais da longa vigência do Código Civil de 1916, é a versão mais recente da minissérie “Gabriela” que passou na Globo. A história de Jorge Amado se passa nos anos de 1920, e nela tem dois personagens: o Coronel Jesuíno Mendonça, interpretado pelo ator José Wilker e a Sinhazinha Mendonça, interpretada pela atriz Maitê Proença e relação desses personagens nessa minissérie retrata exatamente a posição de objetificação dessa mulher, especialmente nos momentos em que o Coronel Jesuíno chegava em casa e apenas a informava para sua esposa: “Deite que eu vou lhe usar”, sem sequer cogitar a possibilidade dela não querer transar naquele dia*

E esse lugar foi mantido por muitos anos na sociedade brasileira sob o fundamento de que esse se tratava de um “débito conjugal”, que seria o dever “recíproco” dos cônjuges de manterem relações sexuais durante o casamento com base numa interpretação do inciso II do art. 231 do Código Civil de 1916 que falava que era dever dos cônjuges: “vida em comum, domicílio conjugal”. E nesse sentido sustentava Nelson Hungria**

“Questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu de estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever dos cônjuges. (…) O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito.”

É interessante falar de um “dever conjugal” nesse caso, já que o art. 231 do Código Civil de 1916 não fala expressamente desse dever – como dito anteriormente o débito conjugal era uma interpretação – e nem os arts. 233 a 239, que falam dos “deveres do marido” e os arts. 240 a 255, que falam dos “deveres” da mulher” dispõe sobre uma obrigação marital ter que manter relações sexuais dentro do casamento.

Isso foi mudando com o tempo e alguns doutrinadores, especialmente após a Constituição de 1988, começaram a defender a possibilidade do estupro marital, que é o caso de Damásio de Jesus***:

“[…] o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual […].”

Fazendo a análise do art. 213 do Código Penal que teve a sua redação alterada em 2009, é possível verificar que o artigo não classifica quem será constrangido (a), apenas fala “constranger alguém”, nesse aspecto, já é possível o estupro marital. Vejamos: 

“Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:      

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.”  

Não obstante, A Lei Maria da Penha de 2006 – que surgiu 18 anos após a Constituição Federal de 1988 -, deixou bem claro a questão do estupro marital, pois a lei em si trata da violência ocorrida no âmbito doméstico e além disso, o artigo 7º inciso III dispõe o seguinte:

“III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;”

E nesse ponto, a Lei Maria da Penha legitimou o reconhecimento do estupro marital dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, isso, até hoje ainda não é suficiente. 

São muitos anos de uma relação de “pátrio poder” do homem sobre a mulher, período no qual se construiu não só legalmente, como também socialmente uma forte corrente de objetificação e colocação da mulher como cidadã de segunda classe, gerando diversas supressões de direitos fundamentais. Por isso, é tão importante que mulheres se municiem de informações, sabiam mais sobre seus direitos e se sintam seguras para se posicionarem e não permitirem que sigam sendo abusadas pelos próprios maridos como se isso fosse uma obrigação ou um débito conjugal.

Observações e referências bibliográficas: 

*Caso queira assistir, é preciso avisar que há cenas de gatilho!

**HUNGRIA, Nélson, LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1954. v. VIII, p. 115-116.

*** DE JESUS, Damásio E. Código penal anotado. 10. ed., rev. e atual.. São Paulo, Saraiva, 2000, p. 96. 

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