O Brasil teve por muitos anos de sua história a impossibilidade de imputar ao marido o crime de estupro, ou por uma questão legal, ou por uma questão doutrinária, ambas pautadas na ideia do “débito conjugal” que seria dever os cônjuges de manterem relações sexuais um com o outro. Isso faz parte da história recente do Brasil, em 1954, o doutrinador brasileiro Nélson Hungria afirmou em seu livro que não era possível falar sobre “estupro marital” e ainda que:
“salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito.”
Ou seja, ele considerava possível que o homem usasse de violência para reivindicar seu “direito” de ter relações sexuais com sua esposa. E isso, obviamente marca uma sociedade, e apesar de termos diversas legislações que abrem a possibilidade de se imputar ao cônjuge o estupro marital, ainda é, na prática, algo muito difícil de se consolidar.
Estudando o estupro marital no Brasil, é quase impossível que não façamos as seguintes perguntas: E fora do Brasil? Como funciona isso? Será que ainda existem países que autorizam expressamente esse tipo de conduta?
Para responder essa e outras perguntas, convidamos a nossa querida colaboradora do Conversa com Elas, a Natália Mazoni (a Nat), para nos esclarecer essas questões.
MARI – Já pegando o gancho nas perguntas acima, existe algum país no mundo em que, até hoje (em 2021), há a obrigação de manter relações sexuais durante o casamento?
Natália: Infelizmente o estupro marital ainda não é criminalizado em diversos países. Em muitos casos, o estupro marital é prevalente em países de direito consuetudinário, ou está inserido em legislações antigas e retrógradas. Um dos exemplos que está sendo amplamente debatido e ganhou projeção internacional no último ano é o caso da Índia, onde o Código Penal autoriza, explicitamente, o estupro marital. Estima-se que, a cada 3 segundos, 1 mulher indiana é estuprada pelo marido, e há uma mobilização intensa para que esse dispositivo legal seja retirado do Código Penal e o estupro marital seja criminalizado no país.
MARI – Nesses países, há a autorização para uso de violência para consolidar esse “dever/direito” marital?
Natália: No caso da Índia, o ato sexual contra a vontade ou sem o consentimento da esposa maior de 15 anos é chancelado pela lei. Essa chancela, também chamada de “isenção ao estupro marital” não é exclusivo da Índia. Há países como Bangladesh, Sri Lanka e Etiópia, cuja legislação criminaliza o estupro como regra geral, mas isenta os casos em que o ato sexual contra a vontade ou sem consentimento ocorre dentro do casamento. Em outros países, a falta de proteção às mulheres está no fato das leis não serem abrangentes o suficiente para impedir, criminalizar e punir o estupro marital. Por exemplo, na Algéria e em Djibouti, a lei é silente – há criminalização do estupro, mas o estupro marital não é definido ou especificado na lei, o que deixa as vítimas carentes de proteção.
NINA – Pensando a respeito desses países, a criminalização do estupro marital é uma tendência no cenário mundial?
Natália: A proteção da mulher contra a violência, em qualquer de suas formas, não é apenas uma tendência mundial, mas também uma pauta essencial para garantir a sobrevivência das mulheres e sua plena participação na sociedade. Um relatório publicado pelo Banco Mundial em 2016 mostra que, em 2015, cerca de 102 países não criminalizavam o estupro marital. No entanto, em mais de 70% desses países, a esposa podia entrar com uma ação penal contra o marido por estupro comum. Apesar de não haver uma base de dados atualizada que indique quantos países promoveram reformas nos últimos anos, é importante ver que o diálogo sobre o tema na comunidade internacional continua com toda força.
MARI – Existem países como o Brasil em que não legislação autorizadora do estupro marital, mas que é possível perceber ainda uma cultura de estupro dentro do casamento?
Natália: A ideia do relacionamento sexual enquanto obrigação conjugal tem origem em visões históricas e culturais do papel dos cônjuges dentro do casamento. Historicamente, o casamento legitimava a propriedade do homem sobre a mulher e objetivava a perpetuação da espécie. A existência dessa dinâmica e da expectativa do “dever carnal” deu origem à presunção de consentimento implícito da esposa para o sexo, dentro da qual não cabia sequer pensar no conceito de estupro marital, já que, no contexto dessa concepção retrógrada, a mulher tem o dever de obediência ao marido. A noção de dependência financeira e emocional também reforçava esse dever. Com o passar do tempo, após marcos importantes na luta pela igualdade de gênero, a mulher foi ganhando mais espaço no mercado de trabalho, e, consequentemente, mais independência dentro de casa.
Apesar da legislação em vários países ter acompanhado essa evolução e criminalizado o estupro marital, muitas vezes há um problema de implementação da lei. Inúmeras mulheres optam por não reportar o marido por medo de retaliação em casa, ou têm receio de que suas queixas não serão levadas à sério pela polícia.
NINA – O simples fato de o estupro marital ser criminalizado coíbe esse tipo de conduta? O que você pensa sobre a quantidade de casos que não são levados ao conhecimento da autoridade pública, por desconhecimento ou vergonha?
Natália: Não basta apenas a lei para que o direito das mulheres sejam plenamente reconhecidos e protegidos, e não só apenas nos casos de violência contra as mulheres, ou de estupro marital, especificamente. É necessário que a população tenha acesso às informações necessárias, não apenas quanto aos dispositivos legais, mas também aos remédios legais e alternativas existentes – como medidas protetivas, casas de acolhimento, acompanhamento terapêutico, dentre outros. É imprescindível que a lei venha acompanhada de uma campanha de conscientização da população, e de capacitação dos profissionais que lidam com as vítimas de violência.