Minha mãe era muito criativa nos métodos de correção e para uma mãe da nossa geração (nascemos em 1993), ela era pouquíssimo adepta à palmada ou qualquer método violento, principalmente porque ela chorava depois. Mas eu e meu irmão éramos muito bagunceiros e brigávamos muito, então, ela teve que gastar toda a sua criatividade para nos educar.

Alguns “castigos” pareciam até uma pegadinha, hoje a gente ri muito dessas coisas, mas eu e meu irmão passamos muita raiva na época. 

De todas as condutas da minha mãe, a que mais me marcou foi o fato dela sempre se abaixar para falar as coisas para gente e todas, absolutamente, todas as vezes falava o motivo pelo qual as coisas não poderiam ou deveriam ser feitas.  

Eu fico pensando como que eu e meu irmão, nunca pensamos em usar da violência para absolutamente nada na vida e devo destacar que somos pessoas nervosas, eu, principalmente. Diante disso, eu vejo como que uma educação sem violência nos ajudou a crescer com menos ímpetos violentos e como a criatividade da nossa mãe em nos educar, nos possibilitou sempre procurar logo de cara a solucionar nossas questões com criatividade. 

Apesar disso, eu sei que essa não é a realidade de muitas pessoas da nossa geração para baixo, boa parte das pessoas que eu conheço foram educadas na base da palmada, do cinto, do chinelo e de outros castigos violentos. São pessoas ótimas, mas que claramente possuem marcas de violência em suas histórias, mesmo que elas falem que acham que aquilo era “necessário”. 

Talvez por isso, é possível ver que algumas delas não querem esse tipo de criação para seus filhos, estudam e buscam outros métodos de educação. Afinal de contas, fugir de educar seus filhos é uma violação de um dever inerente ao poder familiar previsto no art. 1.634, I do Código Civil “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação;”, portanto, não é bem uma opção

Mas e aí? Onde podemos encontrar métodos de correção dos filhos que não envolvam o uso da violência? 

Para responder essas e outras questões, convidamos a Karen e o Fred, que são casados e pais do Francisco e do Benício e que quando decidiram serem pais, estudaram e buscaram adotar com seus filhos uma abordagem educacional diferente.

 

Foto: arquivo pessoal dos entrevistados

O que aconteceu na vida de vocês que fez com que vocês procurassem novos métodos de educação para os filhos?

Karen: Eu sempre tive pela minha mãe uma relação de muita confiança. Desde pequena, ela me dava espaço para falar todos os meus segredos, por mais cabeludos que eles fossem aos olhos dela. Sempre incentivou a minha autonomia e também me colocava pra frente e me dava inúmeras responsabilidades para eu dar conta da vida fora de suas asas. Fui crescendo com muita autonomia, mas nessa caminhada vivemos muitos desentendimentos. 

As minhas malcriações, aos olhos dela, eram corrigidas com palmadas e castigos. Assim como fazia também o meu pai. Não existia muito espaço para o diálogo profundo, aquele que nos permite entender as necessidades e sentimentos uns dos outros. Eu tenho um jeitinho muito diferente de todos da minha casa, sou muito impulsiva, extrovertida, faladeira e muito intensa nas minhas emoções. Por isso, sempre me senti muito incompreendida. 

Perguntava o porquê de tudo, argumentando e defendendo o meu ponto de vista. Não conseguia aceitar uma resposta sem explicação, tipo, “porque não”. Entrava em embates com meus pais e irmã sempre e percebia como a falta de um diálogo nos distanciava cada vez mais. Já ouvi muito grito e também gritei de volta, e hoje eu sei que quando falamos muito alto com o outro, mesmo ele estando perto, é porque nossos corações estão distantes. Esse é um hábito que eu venho tentando acabar com ele em minha vida, mas com muita dificuldade. 

Eu já apanhei muito e fiquei de castigo inúmeras vezes. Esses tipos de correções sempre provocavam em mim um sentimento de revolta enorme, de raiva e de rejeição. Eu fazia o que me mandavam fazer, mas pelo medo. Eu não respeitava porque sentia a necessidade profunda de respeitar uma ordem, mas porque eu era obrigada a tal. Eu tenho profunda gratidão aos meus pais por tudo que eles fizeram, pois tenho certeza que deram para mim o que eles tinham de melhor. Mas, isso não quer dizer que devo fazer o mesmo com meus filhos, pois eu não acredito nesse tipo de educação. 

Eu acredito que cada um de nós veio com uma missão na terra. Por mais pequenas que sejam, nossas atitudes positivas causam uma mudança enorme. Por isso, não quero educar meus filhos para que eles sejam obedientes, pois se carregarem essa característica para a vida adulta eles serão massacrados pelo mundo e nunca terão espontaneidade para serem o que eles vieram para ser. Eu crio meus filhos para que eles sejam compreensivos, que entendam o porquê das coisas e façam tudo com sentido, e não por obrigação. Quero oferecer a eles espaço para serem ouvidos e argumentar sempre, pois é assim que eu desejo que eles sejam quando crescerem. Adultos livres, autônomos, que reconheçam seus sentimentos e que respeitem suas limitações. Está tudo bem em não ser perfeito como a sociedade exige que a gente seja. Hoje eu estou aprendendo com meu filho a conhecer as minhas emoções e ver como eu reajo a elas, pois não fomos ensinados a isso. Sempre tivemos que engolir choro, trancar a nossa raiva no peito, sorrir para o mundo enquanto choramos por dentro. Aprendemos a nos desconectar do que somos e, com isso, vivemos uma vida sem propósitos. 

Essas minhas inquietações me levaram a buscar outras formas de educar meus filhos e, assim que Francisco nasceu, eu comecei a ler muito sobre isso.

Fred: A minha educação e criação na infância e adolescência também foi do método digamos “tradicional”, como nossos pais aprenderam e nos repassaram. Os filhos tinham de obedecer, em quase 100% das vezes, aos comandos dos pais, sob risco de tomarem uns beliscões, umas palmadas ou alguns gritos e ordens duras. Não os julgo, nem os culpo, só agradeço, pois acredito que foi o melhor que podiam fazer e o que estava ao alcance na época (literatura, medicina, psicologia, cultura, etc). E fizeram bem!

Quando chegou a minha hora de paternar, como Karen disse acima, estudamos muito, tanto a literatura vasta do tema, quanto os estudos psicológicos e biomédicos. E duas frases de um curso que fizemos me chamaram a atenção: “Quanto tempo você se preparou pra profissão mais importante da sua vida?” (Murilo Gun) e outra atribuída ao Barack Obama: “De nada adianta um sucesso profissional e um insucesso familiar”

Levando isso pra vida, concluí que meu foco de vida era ser o melhor possível em casa, como pai, como marido, para poder ser um bom profissional também e não o contrário, pois geralmente o que acontece é uma terceirização da profissão mais importante (pra mim): ser pai!

Por onde vocês começaram a estudar?

Quando Francisco tinha meses de vida, fizemos uma mentoria sobre disciplina positiva. Ficamos encantados com o método e começamos a ler muito mais. Primeira coisa que aprendemos e a mais importante para transformar a forma de educar nossos filhos e criar adultos saudáveis: nós educamos pelo exemplo. Precisamos praticar as mudanças que também queremos ver em nossos filhos, e isso envolve um trabalho de autoeducação. 

Tivemos contato também com a pedagogia Waldorf, que nos ensinou muito sobre a importância da primeira infância, o olhar lúdico, puro e inocente da criança para o mundo e como nós, adultos, devemos proteger as crianças nesse período de vida, que é imprescindível para formação dos valores que os pequenos vão carregar para a vida. 

Nessa busca por conhecimento, aprendemos sobre o ritmo natural da criança, a importância da rotina, do sono, da alimentação, do brincar livre, do movimento diário e o cuidado com o uso de eletrônicos para garantir um crescimento saudável aos pequenos e um desenvolvimento conectado com sua essência. 

Compreendemos a importância de olhar para as necessidades dos filhos antes da correção e em como o entorno impacta nas reações ou sentimentos dos pequenos, ou seja, nós adultos precisamos cuidar do ambiente, das nossas emoções, respeitar o ritmo da criança para evitar explosões, já que elas têm necessidades fisiológicas e emocionais diferentes das nossas como adultos. 

Tivemos contato com as técnicas da comunicação não-violenta, que ainda escorregamos muito ao praticar, mas tentamos em nossa convivência como marido e mulher e com nossas crianças. Conhecemos diversos autores que nos ensinaram muitas coisas, como o pediatra Carlos González, que fala com muita propriedade e leveza sobre a importância da criação com apego para formarmos adultos seguros e cheios de autonomia para o mundo. Com esses estudos entendemos que quanto mais proporcionamos um ninho cheio de amor, aconchego, colo e carinho para as crianças, mais elas se sentem seguras e confiantes para se relacionar com o mundo. Aprendemos que tudo tem seu tempo no desenvolvimento da criança. 

Também conhecemos a Laura Gutman, psicopedagoga especializada em maternidade, que explica muito sobre conexão mãe e filhos, a importância do discurso materno e como as emoções dos pais reverberam nas crianças. Os ensinamentos da Eleanor Luzes, médica, psiquiatra e analista Junguiana, também inspiram muito a nossa forma de criar os filhos. Além de todos esses estudos da matéria, trazemos para a criação dos nossos filhos conhecimentos espirituais que aprendemos nas diversas religiões que frequentamos. 

Com todos esses estudos e muito mais que temos buscado em nossa caminhada como mãe e pai, entendemos também algo muito importante: a educação dos filhos começa com a nossa autoeducação e a maternidade e paternidade se torna mais leve quando aceitamos os nossos filhos da forma como eles são, sem expectativas. Quando olhamos com compaixão para os processos das nossas crianças, e também observamos as nossas atitudes como mãe e pai, de forma consciente, ou seja, enxergamos as nossas vulnerabilidade, nós não nos frustramos e enxergamos nessa relação de mãe e filho e pai e filho uma oportunidade divina de autotransformação. 

Não podemos nos esquecer nunca que nossos filhos têm vontades, desejos e trazem uma bagagem espiritual grande. Nossos filhos já nascem com propósitos diferentes dos nossos. Portanto, não podemos colocá-los em uma caixinha, reduzindo o potencial deles às nossas vontades e anseios e limitando sua forma de ser ao que nós, pais e mães, acreditamos ser certo. Ao mesmo tempo, precisamos colocar limites na relação quando suas atitudes chocarem com nossos valores de vida. 

Tão importante quanto tudo isso é entender que oferecemos aos nossos filhos o que temos de melhor, sem culpas e julgamento, e que estamos em uma caminhada de crescimento também. Não precisamos ser perfeitos para sermos pais e mães, precisamos ser conscientes e, dessa forma, vamos também ensinar nossos filhos que perfeição não existe, o importante é caminhar na direção do bem.

As ferramentas da disciplina positiva e outros métodos não podem nos adoecer enquanto pais, pois elas exigem, na maioria das vezes, além do que podemos oferecer. O importante é buscarmos agir de forma consciente e estar cientes de que vamos oferecer a eles o que damos conta.

 

Foto: Lívia Bastos Fotografia

 

Foto: Jéssica Hanna Fotografia

Como foi implementar essa metodologia na educação do Francisco (o primogênito)?

Confessamos que foi e continua sendo muito desafiante. Para colocar em prática tudo que hoje temos como valores importantes na relação com o Francisco, nós precisamos estar disponíveis para praticar muito a paciência, tolerância, empatia e ter escuta ativa para ouvir o que o ele tem a dizer. Validar os seus sentimentos e necessidades, mas isso não quer dizer deixar ele fazer o que deseja. Muitas vezes, refletimos e vemos que estamos agindo com rigor além da conta. Em outros momentos, dissemos não e explicamos o motivo disso. Mesmo com explosões de sentimentos, não cedemos à vontade dele quando vai contra aos nossos valores. 

Quando ele reage às situações com questionamentos e explosões emocionais, entendemos que ele se sente seguro para se manifestar da forma como deseja e com autenticidade. Por um lado, é desafiante pra gente lidar com essas explosões de sentimentos, mas, por outro, nos ensina muito a aprender a lidar com as nossas próprias emoções. 

Francisco é muito persistente. Quando ele quer algo, vai até o final para ter. Em algumas situações, colocamos os limites, pois as atitudes invadem valores que são importantes pra gente. Ele recebe o não com muita frustração, se debate no chão e chora muito, mas nós sempre oferecemos o nosso colo e a escuta para entender o que aconteceu e como podemos resolver. Temos um livro que chama “Emocionário” que traz emoções com gravuras e seus significados. Sempre quando acontece alguma situação de explosão emocional, a gente observa o que causou isso no Francisco e buscamos no livro a emoção que ele sentiu, dizemos que está tudo bem sentir mas que precisamos buscar outra forma de extravasar essa emoção. Lemos uma historinha para que ele consiga elaborar isso melhor. 

Quando sentimos que está difícil controlar as nossas emoções em função das reações dele, saímos de perto um pouco, passamos a bola pro outro ou tentamos praticar a respiração consciente. Muitas vezes deslizamos e acabamos gritando ou puxando o braço com mais firmeza, mas nunca partimos para a agressão física e nem o castigo. Não acreditamos na punição como forma de educação, pois acreditamos que o exemplo educa, então se agredimos quando estamos nervosos ele vai entender que deve fazer o mesmo com as pessoas quando se sentir nervoso também. Escolhemos o caminho do diálogo amoroso. A cada idade é um desafio diferente e estamos sempre em busca de estudos e informações para tentar oferecer o que temos de melhor e que seja compatível com a nossa criação.

Qual foi a reação dos familiares?

Até hoje a maioria tem dificuldade em compreender as nossas escolhas na educação, desde quando Francisco era um bebezinho. Optamos por não usar bico, amamentar em livre demanda, demos e ainda damos muito colo, fazemos cama compartilhada e Francisco foi amamentado por mais de dois anos. Tudo que praticamos hoje vai na contramão do que nossos pais fizeram na época quando éramos crianças. Mas, todas as escolhas foram feitas com muita consciência e sentido a partir de estudos e leituras. E hoje nós estamos colhendo frutos muito maduros e doces de tudo isso que plantamos lá atrás. Francisco está lidando muito bem com a chegada do irmão, apesar de ter alguns momentos de ciúmes, ele está muito respeitoso e carinhoso, entendendo o seu lugar muito importante de irmão mais velho, já que o amor que temos por ele não está condicionado a nenhum “bom comportamento” na visão do adulto. Ele é amado do jeitinho que é e sabe disso. 

Com relação à forma de educar, sem agressão física e castigo, muitas pessoas não entendem, acham que não faz efeito nenhum, mas respeitam. E, para nós, é isso que importa. É lindo ver como os nossos pais também estão mudando a forma de olhar e de se relacionar com o Francisco e Benício. Vejo o esforço que eles fazem também para mudar a cultura da palmada, ameaça e xingos. Embora ainda não aconteça da forma como a gente gosta, entendemos que quem educa é pai e mãe, o resto apenas curte, então, não achamos viável que os nossos familiares enxerguem a educação como nós enxergamos. Ninguém também interfere quando estamos educando nossos filhos e respeitam o nosso espaço como pai e mãe. Apesar de não concordarem com nossas escolhas, respeitam  e isso pra gente não tem preço. 

Na nossa caminhada como mãe e pai aprendemos que os nossos filhos vão estabelecer com cada pessoa que cruzar seu caminho uma relação diferente e muito especial, com aprendizados riquíssimos. Portanto, não queremos estragar essa magia impondo técnicas e comportamentos para as outras pessoas. É essa memória afetiva que ele vai carregar por toda vida e a beleza está em sabermos conviver com as diferenças e limitações uns dos outros. Salvo aqui as situações que envolvam agressões físicas, verbais e castigos. Isso é inadmissível para nós.

 

Foto: Lívia Bastos Fotografia

Eu, Mariana, em nome da equipe do Conversa com Elas, gostaria de agradecer imensamente à Karen e ao Fred por dividirem com a gente a trajetória e a experiência de vocês com tanta clareza e sinceridade. Adoramos esse bate-papo! 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *