Mari – O Estatuto da Pessoa com Deficiência entrou em vigor em 2016, e provocou diversas mudanças no direito material e processual brasileiro. Mas a maior delas envolve a “Teoria das incapacidades”.  O nome, devo dizer, é péssimo, assim como várias nomenclaturas dentro do Direito, mas isso vai para um próximo bate papo. 

Afinal, o que é essa “teoria das incapacidades”? A capacidade é a linha que determina a possibilidade que uma pessoa tem para exercer seus direitos e assumir seus deveres. Como bem explica o art. 1º do Código Civil: “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”. Ou seja, ser uma pessoa natural – aquela que tem a possibilidade de fazer um CPF, não um CNPJ – seria o primeiro requisito para ter capacidade. 

Mas o próprio Código Civil faz ressalvas, razão pela qual a doutrina construiu o conceito de capacidade civil e seus desdobramentos. E assim, foi feita a seguinte divisão: (i) capacidade de direito, que é própria de toda pessoa natural, que nasce e morre com ela; e (ii) capacidade de fato, que está relacionada ao exercício de atos da vida civil.

Aquelas pessoas que têm a capacidade fato e de direito, possuem a chama capacidade plena e aquelas pessoas que têm a capacidade limitada por algum motivo, possuem apenas a capacidade de direito. Esses últimos, se dividem em dois grupos: (a) os absolutamente incapazes, que são aqueles que não possuem capacidade de agir e (b) os relativamente incapazes, aqueles que precisam de alguma assistência para serem capazes de agir sem violarem seus direitos e de terceiros. 

Mas o que que isso tem haver com as pessoas com deficiência Mariana? Bem, originalmente, no Código Civil, haviam dois grupos de pessoas no rol de absolutamente incapazes: 

“II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.”

Essas pessoas, seriam, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, classificadas como pessoas com deficiência e essa disposição violaria o art. 6º do Estatuto que dispõe o seguinte: “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. 

Ai vocês devem estar se perguntando: mas era só fazer um estatuto mais adaptado com essa regra do Código Civil? Pois bem, aí é que mora uma grande questão do próprio estatuto. O EPD (vou chamá-lo assim, pois já sou levemente íntima dele), teve origem na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi uma Convenção da qual o Brasil é signatário desde 2007 e foi recepcionada em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 09/07/2008, com força de emenda constitucional conforme disposto no §3º do art. 5º da Constituição. 

Assim, numa escala hierárquica de normas, digamos que o Brasil, já deveria ter feito a mudança desde de 2008, já que as regras do Código Civil vigentes seriam inconstitucionais.

O EPD veio com muito atraso e resolveu esse desajuste constitucional, mas causou bastante polêmica, já que restaram como absolutamente incapazes os menores de 16 anos. E como relativamente incapazes “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”, ou seja, colocaram todas as pessoas que tenham alguma deficiência que envolva dificuldade de exprimir sua vontade – física ou intelectualmente – num mesmo inciso, “chacoalharam” e deixaram o problema para os advogados e pessoas do futuro, que no caso, sou eu mesma e meus clientes e seus familiares. 

Claro, que eu, Mariana, como advogada, vejo que, no dia a dia, as deficiências são múltiplas, cada uma tem suas nuances e para proteger essas pessoas de forma justa e adequada é preciso ter mais critério e especificidade dentro da legislação. Então, para mim, essa alteração chegou com boa intenção, mas vem causando muita confusão, especialmente na prática jurídica. 

Agora que eu falei da história, da teoria e teci minhas críticas sobre essa alteração do EPD, queria que a Marina falasse de outras alterações do estatuto e o que que ela, como professora lida com as divergências doutrinárias em sala de aula. 

Nina  Após essa belíssima introdução, extremamente bem contextualizada, gostaria de falar um pouco sobre a intenção do EPD. As pessoas portadoras de deficiência sempre foram vistas com uma redoma de proteção por parte da sociedade e do próprio Estado. Como você mesmo disse, Mari, não vejo que tenha sido “por mal”. O intuito seria de proteção, especialmente pelo nível de deficiência que, por vezes, chega a ser incapacitante.

No entanto, quando criamos um tratamento protetivo de forma exagerada, acabamos sendo excludentes, acabamos gerando uma discriminação inerente a quase todas as formas de tratativas.

Sempre vivenciamos a ótica que a pessoa portadora de deficiência precisaria se adaptar à sociedade, e o EPD veio para girar essa lógica de ponta cabeça, como quem diz: “Pera aí. Nós é que temos que nos adaptar! Precisamos incluir todas essas pessoas de maneira verdadeira!”.

O problema dessa generalização é que, como bem apontado por você, Mari, as deficiências são múltiplas e extremamente diversas e a partir do momento em que criamos um tratamento inclusivo de forma genérica, dotando todas as pessoas, independentemente do grau do acometimento de suas respectivas deficiências, de plena capacidade, em vez de proteger, poderemos estar, gravemente, desprotegendo.

A doutrina é muito controvertida em relação às alterações do tratamento da pessoa com deficiência após o EPD. O que aconselho aos meus alunos é sempre entender os dois posicionamentos, os argumentos contra e a favor, para assim desenvolver um raciocínio crítico.

Como toda grande inovação, percebo que o EPD tem seus ônus e bônus. Apesar de essa mudança no tratamento relativo à incapacidade ser preocupante, podemos pensar em diversos benefícios que foram trazidos, como a Tomada de Decisão Apoiada.

A Tomada de Decisão Apoiada não muda o fato de que a pessoa com deficiência, em regra, é considerada perfeitamente capaz, mas cria um mecanismo em que a pessoa com deficiência vai poder instituir no mínimo 2 pessoas de sua confiança e com quem guarde vínculos, para que possam lhe auxiliar na tomada de decisões de atos da vida civil, de forma a trazer todas as informações necessárias para que a pessoa com deficiência consiga exercer de maneira plena sua capacidade.

O EPD também teve a melhoria de sistematizar e catalogar diversos direitos da pessoa com deficiência, assegurando diversas vantagens e institutos protetivos que viabilizam o exercício desses direitos.

Foram, além disso, estabelecidos crimes e infrações administrativas para as pessoas que atentarem contra direitos das pessoas com deficiência, como discriminação, apropriação de valores e o abandono em casas de saúde e abrigos. Apenas um dos crimes (art. 91, que traz a hipótese de “Reter ou utilizar cartão magnético, qualquer meio eletrônico ou documento de pessoa com deficiência destinados ao recebimento de benefícios, proventos, pensões ou remuneração ou à realização de operações financeiras, com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem”) é considerado de menor potencial ofensivo.

Isso significa que na maior parte das vezes os crimes praticados nos termos do EPD não serão julgados nos Juizados Especiais Criminais, e sim pela justiça comum, não sendo aplicáveis a maioria dos institutos despenalizadores – em algum deles, pela pena mínima não ultrapassar 1 ano, é possível a suspensão condicional do processo, mas isso é tema para outro dia.

Apesar de eu também possuir as minhas críticas em relação a alguns dos dispositivos, principalmente relacionados à capacidade, vejo que o EPD é importante ferramenta no cuidado e no acolhimento da pessoa com deficiência, possibilitando a previsão e proteção de diversos direitos e garantias e deve, portanto, ser celebrado!

Mari – Sensacional Nina! Polêmicas à parte, realmente temos muito que celebrar mesmo! Para fechar esse bate-papo, é preciso falar que já existem alguns projetos de adequação legislativa do Estatuto da Pessoa com Deficiência, dentre eles, o PLS nº 757 de 2015, que eu imagino que sanará alguns dos problemas práticos que as pessoas enfrentam no Judiciário. Vamos aguardar o andamento dele, que hoje se encontra na Câmara dos Deputados e seguir debatendo, é do debate que nascem as boas ideias, e as ideias transformadoras!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *