Esse tema é algo que tem feito parte da minha missão profissional desde a faculdade e tem me movido em direção a uma vida profissional dedicada a políticas públicas que gerem mudanças na vida de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. E hoje venho trazer nesse espaço um desabafo. 

A minha história com o sistema a infância e juventude começou quando fiz um estágio na Promotoria de Infância e Juventude Infracional, em Belo Horizonte, minha cidade natal. Nesse estágio, tive a oportunidade de trabalhar com promotoras e promotores de justiça que compreendiam o Estatuto da Criança e do Adolescente e garantiam que suas normas fossem aplicadas em busca da recuperação e ressocialização dos adolescentes que cometiam atos infracionais. Esse trabalho é árduo, principalmente por conta do déficit educacional no nosso país e, também, por conta das pressões sociais fortíssimas de penalização do sistema socioeducativo. A discussão da redução da maioridade penal estava em um de seus ápices em 2015/2016, e isso gerava uma pressão horrível no funcionamento educacional das estruturas do sistema socioeducativo. 

Foi nessa época que conheci um adolescente apelidado de Chuck. Ele ganhou esse apelido do temido boneco dos filmes de horror por ser pequeno, mas já possuir grandes poderes em sua comunidade. Chuck, aos 15 anos, era dono de uma boca de fumo. 

Chuck fazia sua própria contabilidade, expulsou famílias de suas casas para usá-las como ponto de venda de drogas, era temido por seus rivais e respeitado por seus vizinhos. Quando foi pego pela polícia, passou pelo sistema socioeducativo e, durante o acompanhamento de sua medida de internação, foi enviado ao Ministério Público, momento em que tive a oportunidade de acompanhar uma entrevista. Durante seu acompanhamento, puxamos seu histórico: hiperativo (diagnosticado apenas na unidade de internação), foi expulso de sua escola que o taxava de impossível, depois foi abandonado pela mãe aos 9 anos. Passou por abrigos institucionais, sofreu abusos psicológicos e sexuais e fugiu. 

Em situação de rua, acabou sendo acolhido por um renomado traficante. Esse traficante acabou sendo morto e deixou seu império para o menino, quando ele tinha somente 14 anos. Ao final da entrevista, depois de colhermos seu depoimento, solicitamos que Chuck assinasse o documento de transcrição. Então, cabisbaixo, com os olhos ao chão, ele me disse que não sabia escrever. 

Senti no olhar de Chuck toda a vergonha que carregava por não saber escrever. O temido Chuck era, ali, só um menino abandonado. A vergonha que ele carregava não deveria ser somente sua. Ela deveria ser sentida pelo Brasil, que falhou em seu dever de proteger este menino. O sistema público de ensino no Brasil catapulta crianças e adolescentes nas mãos de organizações criminosas, porque exclui aqueles que não conseguem se adaptar a uma escola que reproduz a opressão ao diferente. Imagine comigo: quem Chuck seria se a escola não tivesse jogado este menino na rua? Um menino capaz de, mesmo analfabeto, gerir um “negócio” e fazer sua contabilidade aos 15 anos de idade, seria capaz de cursar uma faculdade, se tornar um grande profissional e, quem sabe, um líder. Mas, ele nasceu no país errado.

Após a experiência no Ministério Público, tive a oportunidade de trabalhar no Sistema Penitenciário, na Secretaria de Administração Penitenciária do Maranhão, e lá pude ver exatamente onde vão parar os Chucks que o sistema socioeducativo não deu conta. 

No Maranhão, desde 2015, existe um forte movimento de humanização do sistema penitenciário, mas antes disso já foi um dos piores sistemas penitenciários do país. É um passado recente, vivenciado pela maioria dos funcionários da secretaria, e as histórias são contadas diariamente pelos corredores:  a superlotação e o abandono, homens empilhados no chão de celas imundas, organizações criminosas liderando rebeliões que resultavam na morte violenta de centenas de pessoas presas e de funcionários das unidades prisionais. Mas o pior disso tudo é: no Maranhão é passado, mas em muitos Estados isso é a realidade atual. 

A realidade do sistema penitenciário no Brasil torna a missão de ressocialização algo quase impossível e o recorte social óbvio das unidades prisionais é constantemente ignorado: são, em sua maioria, homens pobres e negros, que não tiveram acesso a educação básica. Isso significa que, em sua maioria, são pessoas que o Estado falhou durante a infância e adolescência, são pessoas que foram marginalizadas, excluídas e engolidas pela criminalidade. 

A mentalidade puramente penalista leva a unidades prisionais superlotadas, sem bons planos para ressocialização daquela população, o que leva a gastos exorbitantes com um sistema prisional que falha em uma de suas principais missões: evitar que aquelas pessoas que passam por ali voltem a cometer crimes.

Somos o país com a 3ª maior população carcerária do mundo e estamos falhando miseravelmente em reduzir esse número. Nós, como cidadãos, precisamos refletir sobre como enxergamos as pessoas presas do nosso país e precisamos exigir que nossos líderes façam o mesmo. Por isso, peço que você que está lendo esse texto torne essa discussão algo presente, consulte os demais posts que fizemos nessa semana e compartilhe essas informações com quem precisa conhecê-las. Afinal, esse espaço é para vocês.

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