Esse artigo foi escrito em parceria entre Mari e Clara.

Inicialmente, é preciso deixar claro que desde o nascimento da nossa sociedade com um viés patriarcal milhares de mulheres foram assassinadas simplesmente por serem mulheres. Nesse artigo, vamos falar sobre histórias de mulheres que foram assassinadas no Brasil e cuja morte fomentou discussões a respeito desse tema. 

Outra questão que precisa ser delineada antes de iniciar o artigo é que, no Brasil, os dados sobre assassinato de mulheres começaram a ser coletados nos anos 80, quando surgiram centros de apoio a mulheres como o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher, em Belo Horizonte e os SOS Mulher, em São Paulo e em Porto Alegre, que eram grupos organizados e mantidos pelos chamados “movimento de mulheres” e não contavam com um apoio estatal. 

Assim, é quase impossível achar dados e histórias sobre feminicídio no Brasil antes dessa época. 

O primeiro caso marcante é o da socialite mineira Ângela Diniz, que foi assassinada no dia 30 de dezembro de 1976, em sua casa de veraneio na Praia dos Ossos na cidade de Búzios/RJ. O nome do seu assassino era Raul Fernando Amaral Street, namorado de Ângela na época do assassinato. Naquela noite haviam brigado, Ângela decidiu terminar com ele e foi morta. O réu era confesso, mas em seu primeiro julgamento, em 1979, foi condenado a dois anos de detenção – 18 meses pelo excesso e 6 meses por ter fugido do local do crime -, sendo acolhida a tese da defesa de “excesso culposo de legítima defesa”. 

Neste momento, recomendamos fortemente que você, que está lendo este artigo, ouça o segundo episódio do podcast Praia dos Ossos para ter uma dimensão de que, de fato, este foi o julgamento da Ângela Diniz e não do Doca Street. 

No julgamento, a defesa de Doca atacou explicitamente Ângela, usando termos ofensivos e violentos, chamando-a de depravada dentre outros adjetivos horrorosos e que a colocavam como responsável pela própria morte. Era algo completamente absurdo, um show de horrores, transmitido ao vivo na TV aberta e nas rádios. O tribunal do júri foi tratado como um jogo de futebol e a Ângela era a bola.

O segundo caso marcante foi da empresária mineira, Eloísa Ballesteros, que foi assassinada pelo marido, Márcio Stancioli, enquanto dormia no dia 25 de julho de 1980. Crime de réu igualmente confesso que afirmou o seguinte no momento do julgamento: 

“Acordei assustado com gritos. Peguei meu revólver Taurus 38, dei uma volta na casa e vi que quem estava fazendo barulho era Eloísa, que xingava porque o volume da televisão estava alto. Nós discutimos, ela me deixou falando sozinho e voltou para o quarto. Fui atrás dela, enfiei o pé na porta, entrei no escuro e descarreguei as cinco balas que havia no revólver.”

A motivação do crime, segundo o próprio assassino, foi que ela estava tendo – segundo ele mesmo – um caso extraconjugal. A defesa, encabeçada pelo famoso advogado criminalista mineiro Ariosvaldo Campos Pires, sustentou a tese da “legítima defesa da honra”. 

O réu foi condenado por homicídio culposo por 4 votos a 3. O juiz então fixou a pena em 2 anos, concedeu a suspensão da pena pelo réu ser primário. 

A indignação das mulheres presentes, que, naquela época, começaram a ter mais força com os chamados “movimentos de mulheres” repudiaram a decisão, vejamos o trecho do relato do julgamento: 

“Durante a leitura da sentença, as mulheres gritavam “chega!”, enquanto vários homens aplaudiam. Uma jurada rasgou sua carteira e disse que nunca mais voltaria ao tribunal. O delegado Braúna também se surpreendeu com a decisão da Justiça: “Respeito o veredicto, mas nem por isso acho que foi correto.

Dezessete dias depois do assassinato da Eloísa, Maria Regina Santos Souza Rocha, também mineira, foi morta pelo marido, Eduardo Souza Rocha, com seis tiros enquanto saia da ginástica, sob a seguinte fundamentação: 

“porque queria fumar, ‘usar roupa indecente, inclusive biquíni’ e assistir ao programa de TV ‘devasso’ Malu Mulher, com Regina Duarte.

Num trecho do podcast Praia dos Ossos, a repórter Branca Viana, apurou que: 

“Ela casou com o Eduardo, o primeiro namorado dela, e teve três filhos com ele. E o Eduardo era tão ciumento que não deixava nem ela se consultar com ginecologista homem. A Maria Regina só saía sozinha de casa se fosse pra levar as crianças na escola, ou pra ir na aula de ginástica. Depois de cinco anos disso, ela supostamente estava pensando em se separar

Porque é preciso levantar o passado dessas mulheres? Haveria de fato uma justificativa? 

Na realidade, as mulheres que compunham os “movimentos de mulheres” se apegaram em casos com esses para levantar a seguinte questão: era, infelizmente, mais fácil defender, naquela sociedade extremamente machista duas mulheres como a Eloísa e a Maria Regina, do que defender a pantera de Minas – Ângela Diniz. Vejam o trecho da entrevista com a jornalista Mirian Chrystus divulgado podcast Praia dos Ossos: 

 “Nós já tínhamos defendido Ângela Diniz, e a gente defenderia sempre, mas é como se tivesse que dar uma volta a mais, entendeu? Era mais difícil defendê-la publicamente, porque ela tinha um comportamento que não era considerado, principalmente em Belo Horizonte e em Minas Gerais, a pantera, a socialite, a mulher que talvez até tivesse tido um caso com outra mulher. Pra nós, isso não interessava em nada, mas estrategicamente isso era mais difícil pra nós. Então, em ’80, essas duas mulheres, foi mais fácil, em certos termos, defender. Duas mulheres mortas por seus companheiros, seus maridos, porque queriam apenas se separar deles. Pronto. Não que a gente pensasse assim, evidentemente, isso tem que ficar muito claro, mas, assim, em termos estratégicos, eu acho que foi mais fácil essa defesa.” 

E essa estratégia, foi essencial para movimentar e pressionar a anulação da primeira decisão em relação ao caso e levar ao segundo julgamento do assassinato da Ângela Diniz, que correu de uma forma um pouco menos absurda, e que contou com a contribuição dos movimento feministas da época. 

Mas, talvez esses casos pareçam muito distantes, eles já têm 30 anos, então vamos falar de casos mais recentes. 

Um caso muito conhecido e que fez manchete em todo o país foi o caso que envolveu Eliza Samúdio, modelo e atriz, assassinada por Bruno Fernandes, goleiro profissional de futebol, em 2010. Bruno e Eliza namoraram enquanto o goleiro era casado e em 2009 ela engravidou, foi então que as agressões começaram: Bruno a manteve em cárcere privado, com a ajuda de dois amigos, a obrigou a tomar substâncias abortivas, a espancou e a ameaçou com uma arma de fogo. Eliza prestou queixa à polícia em 13 de outubro de 2009.

Em fevereiro de 2010, Eliza teve o filho e entrou com uma ação de reconhecimento de paternidade contra o goleiro. Em junho de 2010 foi dada como desaparecida durante uma viagem ao sítio de Bruno. Durante a investigação, em 6 de julho, um primo do goleiro prestou depoimentos à polícia afirmando que a modelo teria sido agredida por ele com uma coronhada e levada ao sítio de Bruno, onde teria sido esquartejada e seu corpo oferecido aos cães a mando do próprio goleiro, entretanto essa versão nunca foi confirmada pelo polícia e o corpo de Eliza nunca foi encontrado. 

O filho da modelo foi encontrado em uma favela, abandonado pela esposa do goleiro e em outubro de 2010 foi confirmada a paternidade de Bruno.

Após constatação da morte de Eliza e da autoria de Bruno, o caso foi a julgamento em júri popular e Bruno foi condenado a pena de 22 anos de prisão, que após recurso foi reduzida para 20 anos.

Existem inúmeros pontos de destaque no caso de Eliza, mas um dos mais fortes é o fato de que após a queixa prestada à polícia por Eliza, em 2009, a juíza responsável pelo caso desconsiderou a aplicação da Lei Maria da Penha às agressões sofridas pela moça, alegando que a norma só seria aplicada em contextos familiares provenientes de casamento ou união estável, desconsiderando completamente a gravidez de 5 meses da modelo. O Estado falhou miseravelmente ao negar as proteções cabíveis legalmente à modelo e isso, com certeza, contribuiu no aumento de sua vulnerabilidade perante Bruno. 

Além disso, muitas vezes, a veracidade da queixa prestada por Eliza foi questionada pela mídia e pela defesa de Bruno. Um dos argumentos mais levantados era de que a vítima já havia atuado em filmes pornográficos.

Todos esses casos trazem como pano de fundo uma cultura machista, de diminuição da mulher que foge dos “bons” e velhos costumes, que enfrenta os limites invisíveis que a sociedade impõe. Por que a palavra da mulher perde força quando ela é livre? Por que a palavra de uma mulher divorciada valia menos que a da casada durante os anos 80? Por que a violência doméstica contra uma atriz de filmes pornográficos vale menos que a palavra  de outras mulheres em 2010? Por que o Estado não se esforça para proteger essas pessoas?

Essa reflexão nos leva a questões culturais muito profundas e que devem ser questionadas e debatidas. Inclusive, já falamos um pouco a  respeito disso aqui. Mas, cabe a nós, como sociedade, lutar contra esse tipo de comportamento e reivindicar que a lei seja aplicada a todas e todos, sem distinção de classe, raça, ou gênero.

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