Sabemos bem que o homicídio é um crime gravíssimo, doloroso e sem precedentes. Destrói casas, famílias, deixa filhos sem mãe (ou pai). Sabemos também que qualquer um é um homicida em potencial. No papel, jamais seríamos capazes de ferir alguém. Quanto mais em um crime de tamanha violência. Mas existem situações que podem levar qualquer um à loucura.

Construa esse raciocínio comigo. Vamos falar de homicídio privilegiado. Convido vocês à leitura. Diz o artigo 121 do nosso Código Penal:

Caso de diminuição de pena:

§1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.

Nossa legislação autoriza que, a depender dos motivos que levaram à pessoa a praticar um determinado tipo de crime, ele seja beneficiado com uma redução de pena, que poderá variar de ⅙ até a ⅓. 

Quais situações estariam ali abrangidas? Um relevante valor social – algo que toda a coletividade poderia ver, apesar dos apesares, com bons olhos, como matar um traficante local que estava aliciando os jovens adolescentes de uma pacata cidade interiorana -, um relevante valor moral – matar o estuprador da própria filha, por exemplo -, um homicídio praticado sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima – uma pessoa sendo provocada, atiçada, humilhada, que, não se aguenta e revida, causando a morte de quem estava lhe provocando.

Todas essas situações são tratadas de forma diferente pela lei. Dei alguns exemplos só para ilustrar. Nesses casos, não significa que o Estado dá carta branca para assassinos, mas que o tratamento será um pouco menos grave, como se o Estado dissesse: “entendo porque você fez isso”.

Se você leu até aqui e não me conhece deve estar pensando: “será que a Nina está defendendo a legítima defesa da honra?”. Se você me conhece um pouquinho que seja, vai saber que estou só te mostrando o passo a passo para entender a discussão.

Vamos continuar. Agora, já sabemos que existem situações em que o Estado trata o homicida de forma diferente, quando ele enxerga uma maior reprovabilidade na conduta. Uma dessas hipóteses poderia ser, por exemplo, o homicídio passional, a pessoa que está descontrolada, fora de si, no auge de suas emoções, por ter sido injustamente provocada.

Você precisa se lembrar que nossa legislação é da década de 40, e que foi elaborada na década de 30, quando as coisas eram bastante diferentes. Mas não nos percamos. Você sabe o que é legítima defesa?

Legítima defesa é uma situação trazida pela lei em que vamos considerar que a ilicitude, a contrariedade ao ordenamento jurídico, está extinta. Isso significa que o crime não termina de se formar, porque ausente um de seus elementos.

A legítima defesa depende de alguns requisitos bem específicos, que são trazidos pela nossa legislação penal. Para que o artigo não fique técnico demais e você perca seu raciocínio, vou apenas transcrever para você os dispositivos que falam expressamente a respeito do instituto:

        Legítima defesa

Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

      Exclusão de ilicitude (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II – em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

O que isso significa? Que, em algumas hipóteses, o Estado entende que não há crime, se a pessoa estava, de forma moderada e proporcional, se defendendo de uma agressão injusta, atual ou que estava prestes a acontecer, para proteger um direito dela ou de terceiro.

Lembre que eu te disse que a nossa legislação penal vem do início da década de 40. Outro momento de evolução social e moral. Na mesma época, tínhamos outro Código Civil, extremamente paternalista. No começo do Código Penal atual, tínhamos crimes de seduzir mulher honesta, rapto consensual, adultério, dentre outras barbaridades.

E é aí que eu queria chegar. Discutia-se sobre a possibilidade de se entender admissível um crime de legítima defesa da honra. Como assim?

Vamos voltar para o início do Código Penal. O ano é 1940. O sujeito chega em casa após um longo dia de trabalho, exausto, querendo tomar banho, mas um pouco mais cedo que seu horário habitual. Ao abrir a porta do quarto, vê que o chuveiro já está ligado. Mas escuta duas vozes. Pera aí. A esposa está acompanhada no chuveiro. Ele não pensa duas vezes, pega a sua arma que fica dentro do guarda-roupa, coloca a munição, chuta com tudo a porta do banheiro e atira na mulher e no Ricardão.

O que a defesa tentava emplacar? Legítima defesa da honra. O sujeito estava  defendendo  a sua própria honra, seus próprios valores, sua reputação e matando, legitimamente, sua esposa adúltera.

 

Pode isso, Arnaldo?

 

Em um contexto de um país que atinge números homéricos de feminicídio, como o Brasil, a gente até entende como uma coisa dessas pode colar.

Os problemas nesta tese são tão grotescos que fica difícil não se revoltar.

Não sei se você sabe disso, mas quando alguém é vítima de um crime de homicídio doloso – ou seja, com dolo e consciência, havendo intenção -, quem julga é o tribunal do júri. Um tribunal composto por juízes leigos, pessoas que nunca precisam ter aberto uma lei em suas vidas. É a ideia de ser julgado pelos seus pares.

No tribunal do júri, qualquer coisa pode “colar”. Não é preciso apresentar, necessariamente, teses jurídicas. Pode-se apelar para feitiçaria, espiritualidade e o que mais o coração do defensor ou do acusador pedir. Isso porque os jurados julgam pelo princípio da íntima convicção, não sendo obrigados a justificar e fundamentar as suas decisões e também porque no tribunal do júri vigora a defesa plena, maior do que uma mera ampla defesa, em que qualquer fundamento, jurídico ou não, pode servir para influenciar os jurados e fazê-los decidir.

O que muitos advogados tentam, defendendo – em sua quase totalidade – homens que matam diariamente as suas mulheres? Emplacar uma legítima defesa da honra. O sujeito sai, são e salvo, do plenário do júri, como um homem absolvido, inocente de qualquer acusação, porque, ao matar a sua esposa, namorada, amante, vítima, estaria apenas – coitadinho – se defendendo.

Aí você me pergunta: “como algo assim poderia colar?”. Fácil. Uma sociedade que culpabiliza a mulher por tudo, principalmente pela sua sexualidade. Uma sociedade que aponta o dedo para a vítima e não para o estuprador, dizendo que o comportamento era provocativo. Que havia maquiagem demais. Que a saia estava curta. Que ela estava dançando de maneira inadequada. Que ela não devia ter bebido, muito menos ido sozinha para casa. Ninguém mandou ela trair. Alerta de gatilho:

 

Tudo é culpa da mulher.

 

Tudo é culpa da mulher.

 

Você pediu para ser estuprada, não foi?

 

Quem fala sim, não pode mudar de ideia depois.

 

Você estava querendo. Não pode depois deixar na mão. Você disse que queria.

 

No corpo de jurados, também temos outros tantos potenciais estupradores. Potenciais assassinos. Pessoas que se solidarizam com quem mata a sua mulher adúltera. Pessoas que concluem que ela devia estar mesmo pedindo.

E isso colou. Isso deu certo. Por várias vezes, homens foram inocentados porque estavam apenas “defendendo a sua honra”.

Até que, por fim, dia desses, veio uma luz no fim do túnel. O STF, por meio do Ministro Dias Toffoli, decidiu que a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional e não pode ser usada como argumento para justificar feminicídios em ações criminais.

 

Escrevo isso com os dois braços arrepiados.

 

Não é um ponto final na discussão, foi uma decisão liminar em uma ação do PDT, que questiona essa prática que é utilizada pelos réus em tribunais do júri. Como falamos, isso, óbvio, não é um fundamento jurídico, mas no tribunal do júri, era utilizado.

Nessa semana, falaremos sobre o tema, lembrando casos emblemáticos em que o uso da legítima defesa da honra foi usado para explicar e racionalizar a prática de feminicídio.

Ano passado mesmo, tivemos a manutenção de uma absolvição de um sujeito que tentou matar a ex-esposa por meio de facadas, porque suspeitava que ela o estava traindo. Qual a defesa do advogado? Legítima defesa da honra. O que os jurados fizeram? Bateram palma. O caso chegou ao Supremo, que defendeu a soberania da decisão do tribunal do júri. É como sempre andou a carruagem. Como a banda toca.

Mas Toffoli, sabiamente, trouxe em seu voto:

“Apesar da alcunha de ‘legítima defesa’, instituto técnico-jurídico amplamente amparado no direito brasileiro, a chamada ‘legítima defesa da honra’ corresponde, na realidade, a recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil“.

“Concluo que o recurso à tese da ‘legítima defesa da honra’ é prática que não se sustenta à luz da Constituição de 1988, por ofensiva à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e aos direitos à igualdade e à vida, não devendo ser veiculada no curso do processo penal nas fases pré-processual e processual, sob pena de nulidade do respectivo ato postulatório e do julgamento, inclusive quando praticado no tribunal do júri”.

Uma vitória grandiosa na luta pela igualdade de gênero e pela erradicação da violência contra a mulher. Mas foi apenas uma batalha, dentro de uma grande guerra. A liminar vai ser analisada pelo Plenário, pelos demais Ministros do STF.

Precisaremos aguardar as cenas dos próximos capítulos. Mas, um dia, garanto. Teremos todos vergonha de um dia isso ter sido admitido, de qualquer forma que seja, em um Estado Democrático de Direito, que precisa proteger as mulheres da violência que estão submetidas diariamente e que, infelizmente, não raras vezes leva à sua trágica morte.

 

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