Você leu o infográfico feito pela Clara sobre a história da Maria da Penha (clique aqui) e viu que desde 1983 ela sofreu uma série de agressões que pareciam que jamais teriam fim.

Seu filme de terror durou muitos anos. As formas que seu esposo utilizou para tentar matá-la foram devastadoras e muito criativas. Tiro, eletrocussão, violência.

É muito difícil ter a coragem de se expor e denunciar seu agressor. Seja pela retaliação que pode ser causada por ele, seja pela ausência de receptividade social e do próprio Estado.

Em processos que envolvem violência, seja ela física, moral, psicológica, sexual, patrimonial, envolvendo a mulher, tudo parece mais difícil.

Quando imaginamos um episódio de agressão, em que somos estupradas, violentadas, sequestradas, amarradas, o final da história, em nossa imaginação, é sempre o mesmo: o culpado, o violentador e agressor vai ser identificado, processado e preso. E fim da história, certo? Uma caminhada eterna para se reencontrar, cicatrizar, superar. Mas em hipótese alguma passa em nossa cabeça a possibilidade de uma impunidade.

Mas a verdade é que as coisas não são simples assim. Muitas vezes, a violência empregada contra a mulher é silenciosa. Nem sempre deixa marcas. Nem sempre há espectadores. Pense em um caso de estupro. Um estupro que não seja Hollywoodiano. Um estupro em que apenas não há consentimento e mesmo assim o agressor força a vítima. 

Vamos supor que a vítima quer que o agressor seja responsabilizado. Ela enche o peito da coragem que ainda possui e vai na delegacia de polícia. Conta tudo que aconteceu. É invadida pelos exames no IML, conta a sua história, extremamente despreparada e desorientada para passar por tudo isso.

Mas quem vai corroborar a sua história? E se o agressor negar? Ninguém estava lá. Ninguém assistiu. Ela pode não ter sido machucada fisicamente. O estupro pode nem ter sido por meio de penetração sexual. Imagine se ela foi obrigada, por exemplo, a praticar sexo oral no agressor. Isso não deixa de ser estupro, entrando em “outros meios libidinosos”. Nem por isso, ela não foi estuprada. Em um exame pericial, não vai haver vestígio de penetração, porque ela não ocorreu. 

E como fica a vítima?

E como fica a verdade?

Você acha que escutaram Maria da Penha logo no começo? Se ela foi vítima de tentativa de homicídio em 1983, porque depois ainda houve oportunidade para que esse homem tentasse eletrocutá-la? Por que ele foi preso dezenas de anos depois? Por que ele ficou solto por tanto tempo? Por que foi necessário acionar o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM)?

Só depois disso tudo que o caso de Maria da Penha chegou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1998, e, por fim, em 2002, ocorreu a condenação do Brasil por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Quanta violência ela teve que sofrer por todos esses anos. Ela e outras milhares de mulheres que são desacreditadas, humilhadas e ridicularizadas diariamente, pelos seus conhecidos, pelos seus amigos, pelas pessoas que fazem parte do sistema de segurança pública.

Quantas vezes as mulheres são responsabilizadas pelos crimes em que foram vítimas? Em que são julgadas nas delegacias, acusadas pelos advogados de defesa? Quantos casos não são como daquela audiência que todos nós assistimos, em plena pandemia, em que a vítima mais parecia quem estava sob julgamento?

Por isso a palavra da vítima tem uma especial relevância em crimes contra a dignidade sexual e em crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Pelo menos no papel. Na prática, vemos a vitimização, em todas as suas formas.

A vitimização primária consiste nos efeitos diretos e indiretos que a própria prática do crime traz para a vítima, como seus traumas, perdas, dificuldades posteriores, uma eventual depressão, violação física etc. 

A vitimização secundária consiste em a vítima ser repetidamente inquirida na fase da investigação criminal e durante o processo criminal, tendo que vivenciar novamente os momentos em que foi violentada, para prestar seus depoimentos, ser submetida aos exames, suportar as teses defensivas que lhe trazem uma culpa que não é sua, ou seja, a burocratização por parte do Estado e do próprio procedimento que é realizado para uma eventual responsabilização.

A vitimização terciária é resultado de um despreparo da sociedade e do Estado. O Estado não fornece à vítima ferramentas para superar a violência ou se recuperar do crime, e a sociedade não é receptiva com a vítima, apontando dedos, sussurrando em seus arredores e fazendo com que ela não consiga voltar à situação em que se encontrava antes, sendo sempre conhecida e reconhecida como a vítima do crime que vivenciou.

Todas essas formas de vitimização são elementos importantes para que consigamos perceber a gravidade da violência que é causada e seus impactos na vida da vítima, para que possamos nos tornar mais conscientes e formar uma rede de apoio que receba essas pessoas da melhor forma possível, diminuindo as consequências negativas da prática delitiva.

A palavra da vítima precisa ter força. É um imperativo para que consigamos fazer justiça e para que a impunidade não prevaleça. Conhecer esses dados é o primeiro passo. 

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