Ruth Bader Ginsburg, logo no seu primeiro ano em Harvard foi se tornou uma dos 25 melhores alunos da universidade. Na época, ela estava entre as pouquíssimas mulheres que estudavam na faculdade, que havia aberto recentemente vagas para mulheres. Apenas a título de ilustração, Ruth relatou que não podia entrar na biblioteca, pois havia uma regra expressa dizendo que mulheres não poderiam frequentar aquele ambiente.
No terceiro ano do curso de Direito, seu marido, que tinha acabado de se formar, foi chamado para trabalhar em um escritório em Nova York e ela se transferiu para a Universidade Columbia, onde concluiu seus estudos.
Apesar de ter um desempenho acadêmico fora da curva, ela não foi contratada por NENHUM escritório de advocacia, simplesmente, porque ela era uma mulher.
Foi nessa época que ela começou a perceber que existiam milhares de leis federais e estaduais nos Estados Unidos que discriminavam mulheres.
Vejam os exemplos das leis que vigoravam na época (final da década de 60, início da década de 70):
- Empregadores poderiam, legalmente em diversos Estados americanos, demitir uma mulher por estar grávida.
- Bancos poderiam exigir que os maridos assinassem junto com a esposa o pedido para requisição de crédito.
- O estupro marital era autorizado em 12 Estados americanos.
Como Ginsburg não conseguia emprego em escritórios de advocacia, ela seguiu a carreira acadêmica. Naquela época, nos anos 70, surgiu um contexto de protesto exigindo equidade entre homens e mulheres em todo os Estados Unidos – que aliás, influenciou muito os movimentos de mulheres no Brasil na mesma época (leia sobre isso aqui) – e os alunos de Ruth começaram a pedir que ela desse aulas sobre gênero e Direito e a universidade autorizou que essa matéria fosse criada. Foi justamente nesse período que ela começou a ter acesso a casos reais de discriminação de gênero.
Na mesma época a ACLU (União Americana pelas Libertações Civis) começou um projeto para lidar com os casos de discriminação de gênero chamado Women’s Rights Project (Projeto Direito das Mulheres), para o qual Ruth foi convidada a participar junto com outras advogadas.
A estratégia dela era pegar casos que tinham potencial de chegar à Suprema Corte americana. E ela se baseou na cláusula da Constituição Americana que garante a proteção igual para todos perante a lei, inclusive, essa foi a mesma tese adotada por Thurgood Marshall para defesa de casos voltados para a igualdade racial.
Vamos aos casos!
Observação importante! Estamos falando do Direito americano que tem uma estrutura muito diferente do nosso. As decisões judiciais têm um peso diferente e geram precedentes que são mais fortes que os nossos.
1º CASO: FRONTIERO X RICHARDSON (1973)
Sharron Frontiero era tenente das Forças Armadas Americana e descobriu que sua família não recebia os mesmos benefícios concedidos às famílias de seus colegas oficiais que eram homens.
Ao consultar um advogado descobriu que a lei determinava que mulheres não poderiam receber aquele benefício. E então, ela decidiu derrubar a lei através de um processo judicial.
A Ruth foi atrás deles e auxiliou os advogados que iniciaram o caso. Eles perderam no Tribunal do Estado Alabama e o processo foi parar na Suprema Corte. Em sua sustentação oral, Ruth trouxe recortes da história americana para ilustrar que as mulheres eram tratadas como “cidadãs de segunda classe”, isso porque os juízes que compunham a Suprema Corte naquela época eram todos homens, brancos e de classes altas, portanto, na concepção deles não havia um tratamento desigual. Ela fechou a sua sustentação oral com seguinte citação icônica:
“Eu não peço nenhum favor para o meu sexo. Tudo o que peço aos nossos irmãos é que tirem os pés dos nossos pescoços” – Sarah Grimké citada por Ruth Bader Ginsburg.
Elas tiveram 4 votos a favor, mas precisavam de 5 para ganharem o caso, mas Ginsburg já tinha estabelecido como estratégia que ela daria um passo de cada vez (step by step).
2º CASO: WEINBERGER X WIESENFELD (1975)
É o caso de um homem que ficou viúvo após a esposa morrer durante o parto do filho deles. E ele escolheu investir integralmente seu tempo com os cuidados do filho. Então, ele buscou a previdência social para saber sobre o benefício de “pai viúvo ou pai solo” e foi informado que aquele era um benefício somente para as mães.
Ele escreveu uma carta para um jornal que a publicou e a Ruth assumiu o caso dele. Ela optou por pegar o caso de um homem para conseguir demonstrar para a Suprema Corte a profundidade da discriminação de gênero nos Estados Unidos.
E essa foi a primeira vitória da Ruth por unanimidade.
3º CASO: CALIFANO X GOLDFARB (1977)
A falecida esposa de Leon Goldfarb trabalhou como secretária em escolas públicas da cidade de Nova York por quase 25 anos e pagou todos os seus impostos de previdência social até sua morte em 1968. Após a morte de sua esposa, Leon Goldfarb solicitou benefícios de sobrevivência, mas foi negado. A lei determinava que os viúvos sobreviventes devessem arcar com o ônus de provar que receberam mais da metade de seu apoio financeiro de suas esposas, exigência essa que não existia para os maridos. Goldfarb desafiou a lei de Nova York e ganhou. A Secretaria de Saúde, Educação e Bem-estar recorreu para a Suprema Corte.
Ruth sustentou novamente perante a Suprema Corte e os fez constatar que esta distinção privava as trabalhadoras assalariadas da mesma proteção que um trabalhador do sexo masculino em situação semelhante teria recebido, violando o devido processo legal e igual proteção.
Ela ganhou também esse caso.
4º CASO: EDWARD X HEALY (1975)
A Constituição da Louisiana isentava mulheres de servirem em júris, a menos que elas apresentassem uma declaração escrita de seu desejo de servir, ou seja, se voluntariassem para o serviço. Essa “dispensa” resultou em painéis de júri que tinham, no máximo, 5% de mulheres dentre os membros.
Foi proposta então uma ação coletiva buscando uma declaração de que essa isenção violava os direitos das mulheres à proteção igualitária e ao devido processo legal. Ruth sustentou também neste caso perante a Suprema Corte americana, sempre falando que “era uma oportunidade para ensinar”.
O principal fundamento apresentado é que, em geral, os painéis do Júri eram sempre compostos por homens, porque as mulheres só poderiam servir se voluntariar, ao contrário dos homens que eram obrigados e isso não representava verdadeiramente a comunidade ali representada por aquele grupo de pessoas e a ausência de mulheres nos painéis do júri era uma violência à natureza democrática do sistema do júri.
Durante 10 anos Ruth Bader Ginsburg atuou 6 em casos como esses perante a Suprema Corte americana e venceu 5 deles.
Em 10 de agosto de 1993, RBG foi empossada como juíza da Suprema Corte Americana. Ela foi a segunda juíza a ser nomeada para o cargo e trabalhou neste cargo até o dia 18 de setembro de 2020, quando faleceu.
Vamos destacar dois casos interessantes que ela apresentou votos extremamente relevantes e foram em casos como esses que ela se tornou extremamente famosa por “dissent” (divergir) dos demais colegas de Corte, inclusive se tornando alvo de diversos memes criados por fãs no twitter, vejam só:
ESTADOS UNIDOS X VIRGINIA (1996)
A VMI (Virginia Military Institute) era um College (são as instituições de ensino superior norte-americanas comunitárias de origem pública que visam apenas o ensino dos dois primeiros anos de graduação) que aceitava somente homens como estudantes.
Em seu voto, Ginsburg afirmou que era preciso que mulheres tivessem a oportunidade de construírem dentro daquela escola os ideais que eles prezavam. Além disso, a lei violava a Quarta Emenda da Constituição americana que determina que todos devem ter igual tratamento perante a lei.
Neste caso, a maioria da Corte a seguiu, exceto seu colega extremamente conservador o Juiz Scalia.
LEADBETTER x GOODYEAR TIRE & RUBBER CO. (2006)
Foi o caso da funcionária da empresa Goodyear que descobriu que recebia US $3.727,00 de aposentadoria por mês, enquanto 15 colegas que tinham exatamente o mesmo cargo, salário, posição recebiam US $4.286,00 por mês. Contudo, ao constar esse fato, ela esbarrou na seguinte questão: havia uma lei que determina que os empregadores não poderiam ser processados sob o fundamento de discriminação salarial por raça ou gênero, se as reivindicações forem baseadas em decisões tomadas pelo empregador há 180 dias ou mais.
Ruth, junto com outros três juízes da Suprema Corte, divergiu do voto do relator com as seguintes fundamentações por ela apresentadas oralmente direto da bancada de julgamento (ouça o áudio neste link aqui, a partir do minuto 3:48):
- A discriminação realizada no âmbito empresarial geralmente ocorre de forma muito sutil ao longo de grandes períodos de tempo;
- As informações salariais de colegas de trabalho são normalmente confidenciais e indisponíveis para comparação;
- A discriminação salarial é diferente de ações como rescisão de contrato de trabalho, já que estas são óbvias, enquanto as pequenas discrepâncias salariais costumam ser difíceis de reconhecer e por isso, costumam ser percebidas após 180 dias da alteração salarial;
- O amplo propósito de reparação da lei posta em questão era incompatível com a interpretação “restrita” da Corte;
- Por fim, afirmou que o empregador havia “conscientemente levado adiante a discriminação salarial” durante o período de cobrança de 180 dias e, portanto, poderia ser responsabilizado.
Conclusão, em 2009 foi assinado o Lilly Ledbetter Fair Pay Act que é a lei que alterou a questão dos 180 dias para casos de discriminação salarial baseada em raça ou gênero.
BURWELL X HOBBY LOBBY STORES INC. (2013)
Foi levado para o questionamento um regulamento adotado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) dos Estados Unidos sustentado pelo Affordable Care Act (ACA) que exige que os empregadores arquem com certos anticoncepcionais para suas funcionárias, como pílula do dia seguinte e DIU. Esse questionamento foi baseado na Primeira Emenda da Constituição Americana que fala da liberdade de expressão religiosa.
Portanto, a Hobby Lobby, uma empresa fundada por um líder religioso cristão, afirmava que ser obrigado a pagar pelos métodos contraceptivos de suas funcionárias violava sua liberdade religiosa já que sua religião repudia tais métodos.
Infelizmente eles ganharam, porque nos Estados Unidos a questão da liberdade de expressão religiosa é absoluta e nunca questionada, até esse julgamento, em que Ruth, de forma absolutamente inédita, divergiu o voto questionando e sopesando a liberdade religiosa em casos como esses.
Em sua argumentação, ela afirmou que as mulheres puderam contribuir com o crescimento dos Estados Unidos como nação e como potência econômica, dentre outros motivos, pelo fato delas poderem ter controle de natalidade.
E ainda pontuou que “Os trabalhadores que sustentam as operações dessas empresas geralmente não são oriundos de uma comunidade religiosa”.
Bem, como vocês puderam ver neste longo levantamento, o trabalho da Ruth foi incrível e de grande importância para o Direito das Mulheres nos Estados Unidos.
E hoje, dia 15/03, é o aniversário dela!